Archive for agosto, 2010

No instante da partida

25/08/2010

 

Faz vinte anos que adquiri um hábito estranho, espécie de religião inconfessa: sempre que me sinto às vésperas de perder algo, repito, qual um mantra, o mesmo poema do português Jorge de Sena.

Nessas duas décadas, as perdas foram incontáveis. Algumas maiores no tamanho, outras quase insignificantes. Algumas decisivas, outras provisórias. Perdi também vontades e desejos, perdi segurança e certas angústias. Acontece.

Foi com esse poema na cabeça que, domingo passado, entrei, provavelmente pela última vez, no salão do AK.

Não sei bem por quê, mas esse restaurante se tornou, no último ano, meu refúgio favorito. Fui lá inúmeras vezes sozinho ou acompanhado de minha mulher e minha filha. Não sei quantas visitas ao AK relatei no blog; certamente menos de um terço das que fiz.

Claro que a localização, no centro de meu itinerário quotidiano, contribuía. E a comida sempre boa de Andrea Kaufmann, também. Mas há mais coisas entre um cliente e uma refeição do que supõe nossa filosofia, e algumas delas moviam a minha predileção.

Talvez a evocação da Cecilia, minha cozinheira favorita há tanto tempo; talvez as gérberas sobre a mesa, que gostava de fotografar com o telefone; talvez a pequenez do espaço, que soava acolhedora. Talvez, por algum mecanismo fortuito e além de qualquer explicação lógica ou material, eu tenha encontrado ali um lugar que me confortava.

Provável última refeição porque o AK encerrará suas atividades na rua Mato Grosso em meados de setembro ou outubro. Foi tragado pela vertigem incorporadora e demolidora de São Paulo, madrastrópole.

Andrea Kaufmann promete abrir nova casa na Fradique Coutinho, Vila Madalena, com foco em outra cozinha que não a judaica e regulares relembranças do AK. Aguardarei.

Por enquanto fica a perda, aguçada pela ótima refeição: berinjela com tahine, arenque marinado, ossobuco com risoto de quirera, rabada com vareniques, massa com cogumelos, creme brûlée de mel e figos, pain perdu. Não é hora de comentar prato a prato, até porque já falei de todos em posts anteriores.

No fim da refeição, Andrea foi à nossa mesa, como sempre vai a quase todas. Dessa vez, contou que tinha nos reconhecido, sabia quem éramos. Trocamos dois dedos de conversa sobre o fim da casa. Então me voltou à cabeça o poema de Jorge de Sena, que diz que, ‘no instante da partida, há sempre uma demora, não do tempo — da vida’.

Pagamos a conta, desejamos sorte a ela e lentamente saímos, vivendo a tal demora e tentando aproveitar esse instante, que — também nos ensinou Jorge de Sena — é só, mas vasto. Instante que desconforta pelo presente que não prossegue, mas felizmente permite a invenção do futuro.


Jamón, jamón. Jerez, não

14/08/2010

 

Não basta ser pai, tem que participar: a frase é antiga e virou clichê, mas persiste válida.

Quando minha filha nasceu, prometi a mim mesmo que a cumpriria à risca. Por  dez anos, pelo menos, os iniciais, ela seria prioridade na minha vida. Pouco depois descobri que a promessa e o prazo estipulado eram inócuos: ela seria prioridade sempre e para sempre.

Por isso, quando minha mulher viu que o Eñe faria um festival de jamón, vi que não havia jeito: teríamos de ir. Porque, junto com ovas, pato, bacon, alcachofras e trufas, presunto cru está na lista das preferências dela. Em bom português, cria cuervos.

Fomos ontem, penúltimo dia do evento. O cardápio proposto, a 195 reais por pessoa, incluía “degustação de jerez, servido no modo tradicional”.

De fato, é bonito e divertido ver o senhor, vestido a caráter, girar a venencia e despejar o vinho na taça bem do alto, deixando o líquido desenhar no ar. Feio, porém, foi descobrir que a “degustação” resumia-se a uma taça por pessoa, de uns 50 ml, y no más.

Minha filha obviamente não bebeu e nem nos serviram a tacinha que correspondia a ela, apesar de eu tê-la pedido ao garçom. Tampouco isso representou qualquer desconto na nota.

Mas deixemos mesquinharias de lado e vamos ao jamón, que é o que importa.

A tábua de frios de abertura não fazia feio. Três fatias de jamón e outros cinco embutidos, saborosos. Acompanhava um gostoso pan con tomate.

Seguiu uma salada, boa, suave, delicada: tomate picado na base, folhas no meio, torradinha fina, lâminas das discretas mas agradáveis trufas de verão e, claro, a fatia de jamón.

Logo depois, o melhor da noite: cogumelos salteados no bacon com caldo de carne, ovo poché, um fio de azeite e jamón. Diálogo acertadíssimo, sabores definidos, uma delícia.

Quando achávamos que a noite prometia, veio à mesa um equívoco: peixe em caldo de dendê, jamón por cima. Não que o peixe e o caldo fossem ruins. Também não eram bons. Medianos, digamos. Mas o presunto não tinha qualquer relação com o resto. Nenhuma mesmo.

O último prato era o conhecido e sempre macio e suculento cochinillo do Eñe, acompanhado de maçãs carameladas. Sem jamón.

O floresta negra — como dizer?  Desconstruído? – valia pela cereja fresca e pela farofinha crocante. O bolo em si era inexpressivo.

Depois de certo esforço para obter a atenção de algum garçom, consegui pagar a conta (700 redondos, sem vinho) e bastaram uns quinze minutos para que me trouxessem a nota paulista.

Foi ruim? Não. Foi bom? Parcialmente. Valeu o preço? Claro que não. Ele equivaleu ao valor de um tremendo jantar com vinho no Fasano ou no Maní, para ficarmos em exemplos eloquentes.

Por quê? Pela vazio da degustação que não houve, pelos pratos que decepcionaram, pela quase ausência do jamón. Sim, sei que é um ingrediente caro, mas, se pesarmos todo o presunto que foi servido a nós três, dá algo em torno de cem gramas, e olhe lá — no Santa Luzia, outro exemplo rápido, cem gramas de Pata Negra saem por cerca de 50 reais.

E minha filha? Não desgostou, comeu com avidez o prato de cogumelos e depois cansou; no final, queria dormir.

Não perguntei a ela se a expectativa fora cumprida. Quando alguém é prioridade na vida da gente, dá para entender sem palavras.

Eñe

Rua Dr. Mário Ferraz, 213, Itaim, SP

tel.  11    3816 4333

Como chegar lá (Guia 4 Cantos): Eñe


Prática desagradável

11/08/2010

 

Respeito  o D.O.M. e quase sempre comi muito bem lá.

Mas fico indignado cada vez que vejo a prática de oferecer taça de champanhe aos comensais, logo que chegam.

Recuso, claro. Na mesa ao lado, um casal estrangeiro aceitou.

Eles deviam ter perguntado o preço? Deviam.

Mas todos sabemos que, por constrangimento ou distração, a maioria não pergunta.

E a surpresa chegou no final: 98 cada taça que, com o serviço, viram quase 110. Duas taças, alguma alegria e duzentos e poucos reais a mais na conta. Ficaram atordoados, claro, depois bravos.

O D.O.M. precisa mesmo disso? Faz sentido?