Faz vinte anos que adquiri um hábito estranho, espécie de religião inconfessa: sempre que me sinto às vésperas de perder algo, repito, qual um mantra, o mesmo poema do português Jorge de Sena.
Nessas duas décadas, as perdas foram incontáveis. Algumas maiores no tamanho, outras quase insignificantes. Algumas decisivas, outras provisórias. Perdi também vontades e desejos, perdi segurança e certas angústias. Acontece.
Foi com esse poema na cabeça que, domingo passado, entrei, provavelmente pela última vez, no salão do AK.
Não sei bem por quê, mas esse restaurante se tornou, no último ano, meu refúgio favorito. Fui lá inúmeras vezes sozinho ou acompanhado de minha mulher e minha filha. Não sei quantas visitas ao AK relatei no blog; certamente menos de um terço das que fiz.
Claro que a localização, no centro de meu itinerário quotidiano, contribuía. E a comida sempre boa de Andrea Kaufmann, também. Mas há mais coisas entre um cliente e uma refeição do que supõe nossa filosofia, e algumas delas moviam a minha predileção.
Talvez a evocação da Cecilia, minha cozinheira favorita há tanto tempo; talvez as gérberas sobre a mesa, que gostava de fotografar com o telefone; talvez a pequenez do espaço, que soava acolhedora. Talvez, por algum mecanismo fortuito e além de qualquer explicação lógica ou material, eu tenha encontrado ali um lugar que me confortava.
Provável última refeição porque o AK encerrará suas atividades na rua Mato Grosso em meados de setembro ou outubro. Foi tragado pela vertigem incorporadora e demolidora de São Paulo, madrastrópole.
Andrea Kaufmann promete abrir nova casa na Fradique Coutinho, Vila Madalena, com foco em outra cozinha que não a judaica e regulares relembranças do AK. Aguardarei.
Por enquanto fica a perda, aguçada pela ótima refeição: berinjela com tahine, arenque marinado, ossobuco com risoto de quirera, rabada com vareniques, massa com cogumelos, creme brûlée de mel e figos, pain perdu. Não é hora de comentar prato a prato, até porque já falei de todos em posts anteriores.
No fim da refeição, Andrea foi à nossa mesa, como sempre vai a quase todas. Dessa vez, contou que tinha nos reconhecido, sabia quem éramos. Trocamos dois dedos de conversa sobre o fim da casa. Então me voltou à cabeça o poema de Jorge de Sena, que diz que, ‘no instante da partida, há sempre uma demora, não do tempo — da vida’.
Pagamos a conta, desejamos sorte a ela e lentamente saímos, vivendo a tal demora e tentando aproveitar esse instante, que — também nos ensinou Jorge de Sena — é só, mas vasto. Instante que desconforta pelo presente que não prossegue, mas felizmente permite a invenção do futuro.