Não acredito em identidade — de nascença, muito menos. Nem que meia dúzia de símbolos, nomes e lugares possam explicar o que sou.
O lugar em que nascemos é fortuito; não pode nos ancorar vida afora. Verdade que uns pensadores autoritários, lá pela metade do século XIX ou do XX, tentaram dizer que nossa origem, social ou nacional, condicionava nossas opções.
Acredito em passado; acredito na imensa teia de fios de toda cor, textura e calibre que forma o que vivemos. Acredito em relações e em experiência individual e coletiva. Cruzadas, combinadas.
Quando nasci, meus pais moravam em plena Avenida Paulista. Nas imediações da Paulista vivi 45 anos e meio. E meio ano em Milão, perto da Paolo Sarpi e da Via Dante. Metrópoles de cimento, concreto e ruas asfaltadas.
Meu mundo sempre foi da porta de casa para dentro: sem quintal, rua de terra ou pé descalço. Provavelmente por isso estranho a mitificação rousseauísta de um mundo natural que perdemos; nunca o tive, tampouco o quis: gosto de pé calçado.
Soube do saci pelos livros, e ele veio junto com lobisomens russos, lobos de florestas francesas e bandoleiros ingleses. Não sinto que ele me pertença mais do que Peter Pan; não me sinto pertencente a seu mundo.
Pelos livros também descobri que é possível inventar tradições e identidades. Para o bem e para o mal. Para ganhar segurança e justificativa, para se isolar do outro e confrontá-lo. Identidade para afrontar quem não é idêntico.
Porque a identidade, já disse Borges, ou é natural — e nesse caso não faz sentido discuti-la, resta-nos assumi-la e proliferá-la — ou é mera afetação, uma máscara.
No labirinto complexo do meu passado, já fui até holandês e polonês, lá pelos idos da Copa de 74. Durante muito tempo fui francês — parisiense, mais especificamente.
Até brasileiro já fui, embora sem pontear viola. Aprendera, afinal, nos bares da vida e tal qual Drummond, que o nacionalismo era uma virtude. Quando o bar fechou, e ele sempre fecha, fui embora.
No final dos anos 70 virei argentino e dificilmente deixarei um dia de ser. Nos anos 90, italiano, sobretudo siciliano.
É que meu mundo continua a ser da porta para dentro, e quase sempre literário. Sou judeu novaiorquino a cada livro de Philip Roth e pernambucano-sevilhano quando leio João Cabral. Polonês (de novo!) e britânico, como Conrad; norte-americano, vizinho de porta de Louise Glück.
Por que seria diferente na comida e na bebida?
Dificilmente tolero cachaça, cujo aroma excessivo e gosto adocicado quase sempre me afastam: tenho dificuldade de entendê-los. Tomo menos whisky do que devia, mas adoro o sabor. Não sou muito fã de cerveja, mas não dispenso uma Guinness; por isso, celebro o St. Patrick’s Day, e não o Dia de Nossa Senhora Aparecida.
A bem da verdade, tomo quase só vinho e me sinto um tantinho espanhol a cada taça diária de jerez. Renovo regularmente minha máscara borgonhesa e vez ou outra até coloco uma outra, que permite trocar umas palavrinhas na língua do Oc. Siciliano convicto, não resisto a rótulos que mencionam negroamaro ou nero d’avola.
Não, não quero ser uma coisa só. Quero aceitar que meu passado é confuso, misturado, cheio de contaminações. Quero, como Borges, reivindicar qualquer pertença e trocar toda hora de identidade.
Quero lembrar, para encerrar esse longo texto que parece devaneio, que a idéia de nacionalidade foi inventada há menos de dois séculos. Não faz sentido colocá-la à frente de todo o resto.
Quero, toda quarta e sábado, no lugar da feijoada, comer pasta alla Norma, seguida de cannoli e uma tacinha de Passito di Panteleria. E, se a ricota for italiana, pode ser todo dia.
19/03/2010 às 09:41
Quando ouço falar em “identidade” lembro das filas infinitas do poupa-tempo e dos argumentos preguiçosos dos poupa-cérebro…
19/03/2010 às 09:47
Carlos,
e o problema é que o papel é muito pequeno para colocar lá todas as identidades simultâneas que gosto de ter.
Sobre a facilidade do argumento “identidade”, há um texto excelente e direto do Luiz Marques, da Unicamp, publicado há alguns anos na Bravo. Se quiser, lhe passo.
Abraços!
19/03/2010 às 10:17
Alhos, lindo e libertador!
abs
Fernanda
19/03/2010 às 10:19
Quero sim o texto do Luiz!
19/03/2010 às 10:27
Madrugada boa é a que gera textos educativos para serem lidos às 10 da manhã. Me manda esse texto do Luiz Marques, por favor?
Um abraço.
19/03/2010 às 11:54
Não há nada mais rico que possuir várias identidades, ainda mais no mundo de hoje refém da intolerância (seja religiosa, cultural, etc.). E acho ótimo quem vai contra (sem que seja este o motivo principal, apenas ser contra)os clichês e as ‘ditaduras’, seja na comida ou na bebida, ou em qualquer outro aspecto/gosto da vida. Simplesmente adorei este post. Um abraço,
19/03/2010 às 11:58
Fernanda,
obrigado!
Beijos!
Dória & Joana,
texto enviado.
Abraços!
Luciana,
obrigado!
Já houve quem falasse numa “carteira de identidade terrestre”, em que coubessem todas as pertenças e elas fossem móveis.
Quem dera.
Abraços!
19/03/2010 às 14:01
Alhos,
Post lindo!
bjs
19/03/2010 às 14:57
Fiquei curiosa a respeito desse texto.
Teria como coloca-lo na internet com acesso a todos?
Abs,
19/03/2010 às 17:09
Que P… texto, seu alhos. Parabéns.
19/03/2010 às 17:27
Ju,
obrigado!
Beijos!
Fernanda,
tudo bem?
Acho que não.
Eu o tenho num cd da revista.
Abraços!
Fernando,
obrigado!
Abraços!
19/03/2010 às 21:45
Alhos,
Gostaria de comentar com tamanha desenvoltura, não estou apto.
Logo, parabéns belo texto.
Abraços
Dalmo
19/03/2010 às 22:56
Dalmo,
obrigado.
Mas texto é exercício. Você faria, sim.
Abraços!
20/03/2010 às 07:21
Alhos,
belíssimo devaneio!
Coincidentemente na ultima quarta feira aconteceu mais um jantar da Accademia Italiana della Cucina, realizado na Vinheria Percussi e desta vez tendo como convidada a chef Siciliana Fabrizia Lanza, atual titular da Scuola di Cucina Anna Tasca Lanza.
Do menu constavam dentre outros,uma esplendida Pasta alla Norma, Cannolis Sicilianos de comer de joelhos acompanhados de uma inusitada geleia de café e muitas taças de Passito.
Ah! e a ricota naturalmente era sim Italiana, pousou por aqui na bagagem da chef.
Começo a acreditar que você esteve lá…..
20/03/2010 às 10:07
Kaki,
obrigado!
Você acertou em parte: pensava exatamente nesse jantar quando amarrei o texto falando de cannoli, mas ainda não tinha ido. Estava na (grande) expectativa.
Fui ontem à noite e, ao contrário de sua experiência, não tive muita sorte. Fui bem mal servido em todos os sentidos. Uma pena.
Abraços!
20/03/2010 às 10:49
Alhos,
Tua identidade é paulistano, e mais que isso, um tipico uspiano ( acima da media, menos prolixo, atè parece que morou nos EUA e não na Itália).
20/03/2010 às 22:21
Manuela,
mais ou menos isso. Mas mais para menos do que para mais.
Na verdade, não sei se foi uma constatação, um elogio ou uma crítica devastadora. rs
Abraços!
20/03/2010 às 23:36
Parabens pelo texto, muito gostoso de ler!
well done, bien fait, bien hecho, bene fatto!
21/03/2010 às 00:42
Estava eu aqui a beber meu El Principal 2001 ouvindo a Radio Jazz International, quando ao acessar seu blog como de costume deparo-me com esse belíssimo texto.
Agora estou aqui, interpretando-o e me identificando em algumas situações vividas !
Abraço !
21/03/2010 às 20:46
Carola & Luiz,
obrigado!
Abraços!
22/03/2010 às 20:58
Acompanho seu blog em silêncio mas diante deste texto é impossível não falar nada,tão tocante e lindo que é.Fiquei emocionada,de verdade.Abraço e parabéns por tanta inspiração.
22/03/2010 às 22:05
Muito obrigado, Mariângela!
Comente sempre que quiser.
Abraços!
23/03/2010 às 07:49
Sr. Alhos,
Seu lindo texto me fez sorrir e concordar com a cabeça várias vezes. Que suas identidades todas possam vir sempre conversar com a gente.
Um abraço
23/03/2010 às 13:51
Obrigado, Dadivosa.
Conversemos, sempre.
Abraços!
26/03/2010 às 20:29
Caro Alhos,
Devorei teu texto com apetite redobrado.
São tantas máscaras (identidades), que muitas vezes me perco de mim. De repente, me percebo em outra esquina, de outro país, imaginário ou não.
Parabéns!
Abraço
d’ O Avestruz
27/03/2010 às 09:57
Obrigado, Avestruz!
Abraços!
28/03/2010 às 20:19
Belo texto alhos, parabéns!
29/03/2010 às 14:44
Obrigado, Semiramis.
Abraços!
30/03/2010 às 14:17
Obrigada, Alhos! Seu texto fez uma bela faxina na minha alma, que se sente à vontade descalça, mas prefere estar da porta pra dentro. Mias uma vez penso que o que importa mesmo é reconhecer e ser verdadeiro com seus próprios gostos.
Quanto ao tal texto do Luiz Marques, me interessou muito também. Será que vc consegue o título, o ano e número da Bravo em que foi publicado, daí eu corro atrás?
Gracias!
30/03/2010 às 14:25
Leticia,
tudo bem?
Obrigado.
O texto do Luiz Marques saiu na Bravo 47 (agosto de 2001), páginas 13 a 15.
Abraços!
12/09/2010 às 21:50
[…] texto sensacional do Alhos, passas & maçãs, um blógue espetacular sobre gastronomia (dica do Bruno). […]