Temos de ser justos: quem tem bossa é o camelo. O dromedário também, mas o camelo tem em dobro.
Só que, no Brasil, bossa passou a significar talento, vocação. Isso foi lá pelos anos 50 e hoje ninguém mais elogia o outro dizendo que o sujeito “tem bossa”. Das tantas novas bossas que havia — o presidente Juscelino Kubitschek, por exemplo — só restou a bossa nova, movimento musical.
E a expressão, além de indicar talento e novidade, até ficou associada ao Brasil, país que só tem camelos em zoológico.
O Projeto Cozinha Bossa Nova pegou emprestada a força da expressão e se dispôs a reunir chefs jovens. A primeira edição aconteceu em abril e levou Rodrigo Oliveira, do Mocotó, para cozinhar com Raphael Despirite, do Marcel.
Os jantares ocorrem às terças-feiras e isso, para mim, é um problema — e não vou explicar por quê. Resumo: não pude ir e fiquei salivando de longe, tal qual um camelo sem bossas.
A segunda edição foi ontem. Despirite recebeu Joca Pontes, do restaurante Ponte Nova, de Recife.
Camelei, camelei, aproveitei uma coincidência que me liberava mais cedo do trabalho, e fui. Além, claro, da oportunidade quase garantida de comer bem, duas coisas empolgavam: conhecer a comida de Joca Pontes, que nunca provara, e o próprio cardápio proposto.
Porque o cardápio revelava, talvez até melhor do que o da primeira edição (olha aí o despeito de quem não foi!), a junção de estilos.
Ei-lo: polvo grelhado com saladinha de chuchu e beterraba; “linguine” de pupunha com creme de couve-flor, coentro e aratu de pedra; lascas de bacalhau com migas de pão e manjericão, acompanhado de compota de tomate e cebolas ao perfume de laranja; cherne na manteiga de limão sobre purê de jerimun e leite de coco; entrecôte grelhado, mandioquinha e ora-pro-nóbis; queijos; creme queimado ao perfume de umburana; suflê de cupuaçu.
Não valia a pena atravessar um deserto para chegar lá? Valeu.
O único ponto frágil me pareceu a saladinha que acompanhava o polvo: sem graça. Fora isso, todos os sabores que tinham que estar ali estavam — e do jeito como deveriam estar. Polvo perfeito, aratú delicioso, bacalhau excelente, entrecôte suculento. Acompanhamentos sempre adequados, bem dosados, incisivos no diálogo com as carnes.
O creme queimado de sobremesa era fino e macio, delicado e saboroso. O suflê de cupuaçu, um jovem clássico, dispensa comentários.
Mas a estrela da noite, aquele prato pelo qual eu daria uma corcova, foi o cherne. Ligeiramente picante, ligeiramente adocicado, ligeiramente untuoso, ligeiramente ácido, ligeiramente cremoso. Um daqueles grandes pratos, que permitem experimentar os sentidos e os gostos, discerni-los, aprová-los. A combinação que justifica o conceito de bossa nova: novidade, talento, sutil brasilidade (seja o que isso for, estava lá).
Saí do restaurante e, sob a lua — como ficam os camelos no bonito poema de Jacques Roubaud —, voltei para casa cheio de bossa.
26/05/2010 às 19:30
Assino em baixo de absolutamente tudo que escreveu…estava tudo fantástico…mas o Cherne era de comer de joelhos…parabéns aos nossos jovens e criativos chefs
26/05/2010 às 19:43
Paula,
que delícia, não foi?
Abraços!
26/05/2010 às 20:44
Alhos… fui outra noite nesse jantar. Esses jovens talentos são mesmo cheios de bossa!
E cherne – adoro cherne – é um peixe muito consumido no Rio. Aqui em Sampa quase não vejo nos cardápios.
Esses contrastes de sabores são favoritos mesmo. Belo texto, como sempre!
26/05/2010 às 21:22
Que bela experiência, hein, Alhos?
Não me perdoo por não ter ido, ainda, ao Marcel. Toda vez que vou a São Paulo eu me faço a promessa de ir, enfim, conhecer o trabalho do Raphael. E toda vez, nem sei bem como ou por que, acabo sendo levada por caminhos outros…
26/05/2010 às 21:45
Helena,
tudo bem?
Obrigado.
Lamentei muito ter perdido a primeira.
Já comi bons chernes no próprio Marcel.
Beijos!
Constance,
tudo bem?
Uma delícia.
Uma hora conhecerá e imagino que gostará.
Beijos!
27/05/2010 às 00:24
Alhos , obrigado pela visita! Que bom que voce gostou, mes que vem tem mais!!
Constance, quando vier me avise.. venha provar o menu degustação..
Abs!
27/05/2010 às 03:27
Fui aos dois e posso garantir que a junção de estilos na primeira edição também ficou bem evidente. Coisa bonita de ver.
27/05/2010 às 08:07
Obrigado, Raphael.
Sempre muito bom.
Abraços!
27/05/2010 às 08:10
Roberta,
tudo bem?
Taí: era mesmo despeito de quem não foi à primeira edição! rs
Brincadeiras à parte, não tenho dúvida de que a combinação entre a comida do Rodrigo Oliveira e a do Raphael Despirite só poderia dar certo.
E, no jantar da terça, conheci você pessoalmente, embora de longe. Bicho do mato, evidentemente não iria me aproximar…
Abraços!
27/05/2010 às 11:59
Sabe que vc é a terceira pessoa que me “conheceu pessoalmente” naquele jantar? Só que eu não conheci ninguém!! Tô começando a me preocupar com a imagem (antipática, dura?) que fazem de mim…
27/05/2010 às 12:43
Roberta,
hahaha.
No, no.
Simpática.
Abraços!
09/03/2011 às 17:49
Além de Joca Pontes, que gosto bastante pela competência e estilo, o Recife tem ótimos chefs e restaurantes. Adorei o blog – acabei de ler alguns posts e com certeza voltarei mais vezes. Abraço. Mariana
09/03/2011 às 18:43
Mariana,
tudo bem?
Obrigado pelo comentário.
Sim, Recife hoje é uma maravilha gastronômica. Queria ir mais lá.
Abraços!