Ela calculou que devia deixar a taça mais para a direita, linha reta com o braço apoiado. Ele nem percebeu. Olhava mais para o alto, buscava alguma coisa no rosto dela, talvez a boca — não, ele não escapava do clichê.
No centro da mesa, um mar de objetos: azeite, vela, pães, telefones, tudo mais ou menos abandonado, só para atrapalhar a circulação das mãos.
Então ela deslocou ligeiramente o corpo para frente e ele segurou mais forte o cabo da taça, tinha que tocar em algo, firmar. Só não via o movimento da perna, dela, sobre salto, quinze, sob a mesa, ainda distante da dele. Ficava assim meio marujo, na maré baixa.
Ela, terrena. Mas faltava jogar o dado, tentar regrar o acaso. A escassez no gesto era compensada por algo excessivo em ambos: o queixo dela, a gravata dele.
Vieram os pratos, massa, e o vinho ia — também a garrafa, na sua coerência literal, contribuía para o engarrafamento na mesa.
Havia (obviamente) risos. E alguma dança, feita com os pulsos.
Pensei que o pessoal do Animal Planet faria um ótimo programa sobre o peculiar ritual de acasalamento que começava: típico de Homo sapiens, subespécie classe média alta, subsubespécie freqüentador de restaurante da moda.
Daí foi a vez dele — cabe ao homem, afinal? — tentar abrir espaço. Deslocou uma taça, contornou outra, derrubou planejadamente a rolha, rasgou o sorriso tímido, procurou algo e encontrou o azeite. Só mesmo na imaginação do narrador vizinho o objetivo era a mão dela.
Ainda não, na realidade. Demoraria minutos, horas, meses, talvez nunca, para que algo ali se completasse. Talvez por isso, ela preferiu acomodar as costas na cadeira, avançar a perna para o lado, abdicar do contato direto em favor da mastigação.
Devia estar boa a massa deles, tanto que adiava o desfecho do começo, empacava o ritual — veja só, pessoal do Animal Planet, isso não acontece com lontras.
Só que meu prato estava ruim e, mesmo consciente do prejuízo para a narrativa, pedi a conta e fui embora.
27/04/2011 às 13:13
Ótima narrativa, Alhos! Confesso que também imaginava que o objetivo era a mão da moça…
Um pouco fora do tópico, mas não muito: ah, os restaurantes da moda… por que a maioria despende tanto esforço e tantos recursos no que se vê, mas tão pouco no que serve?
Depois de várias experiências frustradas, e com a restrição orçamentária típica do pós-casamento, minha esposa e eu temos preferido fazer em casa o que se poderia comer fora dela. É, claro, não temos os ambientes nem o serviço (para o bem e para o mal), mas podemos desfrutar dos grandes dotes culinários de minha esposa, além de gastar menos. Bem menos.
Quando saímos, o que não tem sido praxe, costumamos fazer a linha do “play safe”, indo apenas aos lugares que já conhecemos e que figuram no topo da nossa lista de predileções. Por enquanto, tem sido sucesso garantido.
Quando a situação ficar mais confortável, espero que haja novidades animadoras no ramo dos restaurantes para que possamos tentar nova diversificação…
Um abraço,
Sérgio
27/04/2011 às 16:58
Pô, Alhos, sempre leio seus posts e nunca comento. Mas dessa vez não da! Não sei o que é pior: a massa ruim ou não saber o fim da dança de acasalamento.
abraços!
27/04/2011 às 22:34
Quanto álcool tem neste post?
Brincadeira! Muito bacana tua narrativa! 🙂
28/04/2011 às 08:42
Sergio,
tudo bem?
Obrigado.
Infelizmente não há muitos “porto seguros”.
Tenho saído pouco também.
Abraços!
João,
tudo bem?
O desfecho certamente ocorreu bem longe do restaurante… rs
Abraços!
André,
tudo bem?
Obrigado.
Nada de álcool, estava apenas observando, acompanhado de minha água mineral.
Abraços!
01/05/2011 às 22:28
Tão bom!
Me deu a sensação de estar vendo o casal genérico.
04/05/2011 às 12:28
Gabriel,
tudo bem?
Obrigado.
Tomara que tudo tenha prosseguido bem entre eles. rs
Abraços!
04/05/2011 às 17:49
Oi Alhos,
lembro de você postar no twitter essa cena. Mas só conferi o post hoje. A narrativa tá ótima!
Mas faltou dizer qual restaurante serviu de cenário para “O nhanha”… Ou será que eu papei mosca na narrativa? rs
Abs
ps. Quando você descreveu “sobre o salto, 15, (…)”… Isso é uma análise bem feminina, não é? rs
04/05/2011 às 18:07
Ótima narrativa/crônica. Daqui desfrutei desse hábito que tanto gosto: observar a mesa ao lado!
07/05/2011 às 07:05
Só comento agora, mas acompanhei a narrativa pelo twitter, no dia, e vi que não ia dar em nada, mesmo. Um grande abraço!
07/05/2011 às 09:07
Henrique,
tudo bem?
Prefiro deixar o restaurante de fora.
E acho que tem razão: o salto 15 é um toque feminino.
Abraços!
Maria,
tudo bem?
Obrigado!
É sempre divertido olhar ao redor.
Abraços!
Rubens,
não sei, não sei…
Abraços!
09/05/2011 às 20:23
Bem legal a narrativa.
Parabéns pelo excelente blog. Já o acompanho há algum tempo, mas só agora tive “coragem” de comentar.
Tenho um blog dedicado à baixa gastronomia, com dicas de várias cidades do país. Se quiser conhecer o endereço é http://www.baixagastronomia.net
Um grande abraço e vida longa ao “Alho, Passas e Maçãs”!
10/05/2011 às 08:38
Daniel,
tudo bem?
Obrigado.
Visitarei seu blog, sim.
E volte sempre!
Abraços!
16/05/2011 às 12:32
Caro Alhos:
Na última semana fui vítima de preconceito no Epice, restaurante recém inaugurado em São Paulo. Fui “convidado” a deixar o estabelecimento pelo fato do meu filho ter necessidades especiais. Você teria interesse de publicar um texto de minha autoria, com o relato do ocorrido? Em caso afirmativo, me mande uma mensagem de email. Desde já, muito obrigado.
16/05/2011 às 18:23
Glauber,
tudo bem?
Lamento muito o ocorrido.
O caso que, em linhas gerais, você relata é – caso não tenha ocorrido algum problema de comunicação ou mal entendido – bastante grave.
Não publico textos de outras pessoas no blog porque rompe sua lógica de relato e testemunho pessoal (fiz isso apenas duas vezes: numa delas, o texto era de minha mulher; na outra, de uma amiga, cuja visita ao restaurante eu acompanhei. Ou seja, em ambas as vezes participei da refeição).
Deixo-o à vontade, no entanto, para relatar o caso aqui no espaço de comentários.
E sugiro dois outros caminhos (que, obviamente, não excluem o relato aqui no blog): estabelecer contato com o próprio restaurante e avaliar, a posteriori, o episódio e escrever ao Guia, do jornal O Estado de S. Paulo, que tem seção dedicada exatamente a ocorrências desagradáveis havidas em bares e restaurantes.
Em qualquer dos casos, acho necessário que o caso seja esclarecido: seja para diminuir ocasionais mal-entendidos, seja para que episódios dessa ordem não se repitam.
Abraços!
30/05/2011 às 22:30
Alhos, sempre acompanhando suas obras…E como é bom se esbaldar em algo tao inofensivo, como uma bela degustaçao, e sobretudo gostar do que se faz diversificando varios sabores e opinioes. Ao final sempre parabens pelos comentarios.
02/06/2011 às 08:29
Mailin,
obrigado!
Abraços!
06/06/2011 às 19:12
Ah! Não teve prejuízo não… o final da dança por conta da imaginação é melhor… vai que a dança fica igual a massa? Adorei o texto! Abraços, Adriana.
07/06/2011 às 14:35
Adriana,
obrigado!
Abraços!