Se Hércules hoje vivesse, deveria enfrentar um décimo-terceiro trabalho, e este deixaria o Leão da Nemeia e a Hidra de Lerna no chinelo: diferenciar os restaurantes que abrem e fecham, em velocidade invulgar, na cidade de São Paulo.
Na aparência de quase todos, prevalece um estilo que deseja ser vagamente moderno — e, contando com a boa vontade do observador, em geral consegue.
No serviço, o padrão “simpático e meio informal” assume ligeiras variações no que tange ao grau de intimidade que o garçom tenta estabelecer com o comensal — e, em proporção direta, ao nível de constrangimento que provoca.
No cardápio… Ah, os cardápios! Cada vez mais semelhantes, repletos de “releituras”, de combinações que eram incomuns há vinte anos e hoje viraram banais.
Talvez a padronização seja efeito de um gosto médio do comensal. Talvez venha do mesmo esforço presente na decoração: buscar uma modernidade imprecisa.
Ou talvez, ainda, das inefáveis assessorias e consultorias: as primeiras parecem supor que só há espaço no mercado para um certo tipo de gastronomia; as segundas oferecem receitas mais ou menos parecidas para restaurateurs de todos os quadrantes, justamente ansiosos pelo sucesso e temerosos da recepção que terão.
Hércules provavelmente suspiraria, cansado, diante de cardápios tão semelhantes e hesitaria entre a Corça Cerineia glaceada (acompanhada de quinoa e bacuri) e o Javali de Erimanto em crosta de pistache, com purê rústico de batata e azeite trufado.
Perto da minha casa, abriu, faz pouco tempo, um restaurante que em vários sentidos se parece com o modelo acima: Mimo. Visual agradável, cardápio construído por consultoria, vontade de ser moderno.
Hesitei em visitá-lo, demorei, esperei ouvir opiniões. Até que hoje, quase por acaso, acabei por conhecê-lo. Segui um princípio infalível: começar pelo almoço executivo. Se o restaurante for honesto e competente nele, há grande chance de ser em tudo.
De entrada, escolhi uma salada fresca de vagem, ervilha torta, avelãs e ricota, ao molho de laranja. Fresca, agradável, mas com sabores discretos demais: ingredientes pouco marcantes, laranja sem qualquer presença. Difícil chegar a qualquer conclusão a partir dela. Restava esperar o principal.
Antes dele, uma cortesia explicava o nome da casa: bolinho de tapioca e bolinho de arroz. Bem feitos, sequinhos, gostosos.
Eis que chegou o peixe do dia, uma dourada, na crosta de quinoa com semente de mostarda e legumes glaceados. A crosta, embora trouxesse um toque interessante de laranja, carecia de crocância. Todo o resto, porém, estava ótimo. Os legumes (abobrinha, cenoura, vagem, tomatinho), muito bem preparados; o peixe, no ponto exato, suculento, saboroso.
De sobremesa, um macaron cortado ao meio e recheado com queijo e goiabada. Não era um grande macaron, mas o conjunto resultava bom.
Café de boa qualidade e bem tirado, conta honestíssima de quarenta e poucos reais.
Bem alimentado e satisfeito, pensei no décimo-terceiro trabalho do semi-deus e o que poderia ajudá-lo. Nadar até Creta ou lutar contra animais bi ou tricéfalos não adiantaria. Atlas, que o auxiliou em outra oportunidade, anda muito ocupado: além de pesado, o mundo vive em turbulência.
Então entendi: bastaria que alguém se aproximasse de seus ouvidos e sussurrasse: “prove”.
Porque a infausta semelhança de tantos restaurantes se desfaz após as primeiras garfadas. É ali que você descobre se, na cozinha, há um cozinheiro de verdade.
No Mimo, há.
Rua Caconde, 118, Jardim Paulista, SP
tel. 11 3052 2517
18/04/2013 às 17:58
Também fui ao Mimo com relutância. Muito moderno para mim e me pareceu, a primeira vista, um restaurante de “amador”. Sabe aquele tipo de pessoa que “ama” cozinhar e receber e por isso acredita que entende do assunto.
Também me surpreendi. Não só comi bem, como encontrei algumas ousadias gostosas, como o uso de tutano em pedaços levemente assado num hambúrguer (prato que dispensava alguns outros elementos). Além disso, a “amadora” é simpática e profissional.
Mas gostaria de fazer um comentário a respeito da seguinte colocação: “parecem supor que só há espaço no mercado para um certo tipo de gastronomia; as segundas oferecem receitas mais ou menos parecidas para restaurateurs de todos os quadrantes”.
Os restaurante fazem isso mesmo porque é exatamente isso que o público espera. Um restaurante que saia muito da linha, que realmente ouse, pode até agradar ao titular do blog ou a mim, mas viveria vazio. A maioria das pessoas não vai a restaurantes pela comida e sim para ver e ser vista. Para cumprir uma obrigação social e guia-se por receitas prontas e simples. Vide o sucesso de mistificações vagabundas como o Entrecot de Paris. Pelo mesmo preço você pode comer um Bernaise melhor no Ici e terminar com uma sobremesa que não seja aquele maldito mousse de balde. Mas os modernos continuam lotando aquele troço.
Recentemente conversei com os donos de um restaurante japonês localizado fora do eixo da moda. Eles me diziam que montaram aquilo para oferecer comida de qualidade ao público da redondeza. Acreditavam que fugindo dos alugueis caros poderiam oferecer um cardápio razoavelmente sofisticado por um preço de bairro.
De certa forma, tiveram sucesso. Montaram um cardápio simples, baseado em sushis, sashimis e combinados, com uma excelente variedade de peixes e iguarias. Contrataram um ótimo sushiman e passaram a entregar um produto de qualidade bastante próxima a dos conhecidos sushis do Itaim pela metade do preço. Uma proposta bastante razoável na minha opinião.
Depois de alguns meses eles foram atropelados pela realidade. O público não esta interessado em cara-pau, serra, vieiras e outras delícias. Está interessado em SALMÃO! Eles não desistiram, o restaurante vai bem e vender salmão é até bom para o negócio, mas gastronomicamente é frustrante.
Na minha opinião isso é causado pelo fato de nosso mercado consumidor de restaurantes ter sido formado há muito pouco tempo. Não adianta o restaurante complicar se o público não compreende. Quem sabe daqui mais uns 20 anos…
21/04/2013 às 16:58
Carlos,
tudo bem?
Tendo a concordar com você em linhas gerais: o gosto também é inventado culturalmente e segue padrões e regras que não têm necessária relação com o Paladar.
Felizmente temos exceções bem sucedidas, que mostram que é possível fugir à regra e arriscar. Também não acho que seja necessário contestar o gosto do comensal ou pretender – às vezes de forma exagerada – orientá-lo ou “educá-lo”, como acontece em alguns restaurantes japoneses que baniram o salmão do cardápio.
O restaurante japonês a que você se refere, salvo engano, fica na zona norte, não é?
Abraços!
21/04/2013 às 20:58
Sempre acompanho, mas hoje vou comentar…. Primeiramente parabéns……. juro, não vou me alongar.. rss esse post remete à busca nos alfarrábios ( confesso, seus textos são de uma interpretação refinada ) mas no final vc volta à linguagem comum de passar aos leitores o dia dia do trabalho de simplesmente saborear um prato de comida!!!!
Sou seu fã!!!
21/04/2013 às 20:59
E do JB também!!!!
22/04/2013 às 09:28
Ricardo,
tudo bem?
Obrigado.
Sim: ir a um restaurante é essencialmente para… comer!
Abraços!
24/04/2013 às 18:31
Olá …
Adoramos o seu blog e acessamos sempre (tanto que está no nosso blogroll)!
Acabamos de colocar nosso site, com um novo formato, no ar e queremos convidá-lo para acessar: http://www.dedodemoca.net
Se tiver críticas ou sugestões serão super bem vindas!
Abraços,
Equipe Dedo de Moça
28/04/2013 às 18:35
Obrigado, Erica.
Boa sorte com seu blog.
Abraços!
30/04/2013 às 23:17
Hércules teria o seu décimo terceiro trabalho inconcluso, nestes tempos contemporâneos. Ou talvez transformasse o leao de Nemeia num prato principal, envolto em espuma feita com os pomos de ouro, num Prato servido por Hipolita…abs, excepcional texto.
01/05/2013 às 11:38
Wair,
obrigado.
Espuma de pomo de ouro deve encarecer a refeição, mas vale a pena! rs
Abraços!
01/05/2013 às 19:36
Mais um texto impecável 😉
Fui apenas uma vez ao Mimo e não achei nada de espetacular nos pratos. O atendimento, sim, foi primoroso, coisa dificílima de achar.
Alhos, você já foi ao Zino (V. Mariana)?
02/05/2013 às 14:29
Jana,
tudo bem?
Obrigado.
Não achei o Mimo espetacular. Mas correto e honesto – o almoço executivo, pois ainda não experimentei o menu regular.
E não conheço o Zino. Que tal?
Abraços!