Poucas coisas são mais perigosas, no mundo das comidas, do que certos eventos gastronômicos: jantares com chefs convidados, festival disso ou daquilo. Aprendi a evitá-los depois de ter caído em algumas armadilhas.
Certa vez tive o duvidoso prazer de acompanhar a animada conversa da chef siciliana convidada, confortavelmente sentada na mesa ao lado, enquanto enfrentava massas muito mal preparadas. Outra vez, num “festival” de Jerez e presunto cru, me deparei com três ou quatro reles fatias do presunto e tive que implorar ao garçom para conseguir uma segunda taça de Jerez.
A verdade é que tais eventos são, quase sempre, uma espécie de show-room: prestam-se à divulgação de um restaurante ou produto. Neles, a comida só é protagonista na aparência.
Pior ainda é quando, investidos de suposto glamour, os eventos atraem cardumes de exibicionistas e a comida… Bem, nesses casos, calculo que ninguém se importe muito com a comida.
Três semanas atrás, no entanto, recebi uma mensagem que divulgava um jantar especial. Intitulado “(Re)conheça jardim de inverno”, tinha a ambição de apresentar plantas — comestíveis, claro — inusuais nos cardápios. Seriam seis pratos, elaborados por Alberto Landgraf, Alex Atala, Fernanda Valdivia, Helena Rizzo, Roberta Sudbrack e Rodrigo Oliveira. Ou seja, uma boa ideia e alguns dos melhores chefs hoje em atividade no Brasil.
Comentei em casa que tudo parecia interessante: pela proposta, pelos cozinheiros e pelo fato de o evento ser idealizado pelo C5 — Centro de Cultura Culinária Câmara Cascudo, liderado pelo mestre Carlos Dória.
Foi então que ouvi algo ainda mais interessante: e se o jantar fosse meu presente do dia dos pais?
Como você sabe, caro leitor, é indelicado, muito indelicado, recusar presente dessa ordem…
E assim fomos nós, plena segunda à noite (tendo que levantar às 5h30 da terça), para a Manioca — do Maní —, que organizou e hospedou o evento.
No coquetel de abertura, com petiscos sensacionais de Helena Rizzo, o destaque foi o peixinho-da-horta — peixe planta, não bicho — com ovas de truta.
Em seguida, o desenrolar do cardápio:
— batata doce, pera fermentada, capuchinha e iogurte (Landgraf);
— purê de taioba com moela e coração de galinha (Atala);
— pargo pochê em vinagrete de ora-pro-nóbis e cúrcuma (Sudbrack);
— cozido de guandu com caldo de suã, abóbora, vinagreira e barriga de porco brulée (Oliveira);
— mil folhas com sorvete de lírio do brejo (Rizzo);
— suflê de chocolate com sorbet de banana e bacupari (Valdívia).
Salgados e doces muito bons, mas o purê de taioba com moela e coração ia além e o cozido de guandu & cia. era arrebatador: foi o grande prato da noite.
Para acompanhar o coquetel e os dois primeiros pratos, champagnes. Para os demais, vinhos nacionais: chardonnay para o pargo, merlot para o guandu, espumantes para os doces. Bebidas boas, generosa e ininterruptamente repostas — algo quase inacreditável em eventos gastronômicos e altamente preocupante para quem devia dirigir depois.
Um presente de dia dos pais maravilhoso, claro.
Qual é a conclusão? Duas conclusões.
A primeira é que continuarei evitando eventos gastronômicos — o jantar de ontem não tem qualquer relação com festivais e visitas de chefs convidados. Foi, em dois adjetivos, um jantar sério e lúcido: afinal, o que estava em jogo ali era o desenvolvimento e a divulgação de uma ideia, de um conceito. Claro que tal ideia e qual conceito podem ter, ou vir a ter, sentido comercial, mas a lógica que presidia o jantar não era a do mercado, em sua fúria sanguinária, na busca imediatista por consumidores.
A segunda é que ideias e conceitos podem (e devem) ser postos à mesa. Numa época em que tantos cozinheiros fazem suas ideias (ou as alheias) prevalecer ao sabor, tendemos a reagir ao excesso de conceituação e pirotecnia no mundo das comidas. Mas só e simplesmente porque muitas vezes as ideias são mal traduzidas para o prato.
Ou porque as pessoas esquecem de oferecer o que há de mais elementar em qualquer refeição: o prazer de comer.
13/08/2013 às 10:21
Caro Alhos,
parabéns pelo dia dos pais e pelo presente que você recebeu.
Realmente interessante, não parece nem de longe ter sido representativo dos famigerados eventos gastronômicos.
Pessoalmente, teria sido um desafio encarar o prato com moela, uma das pouquíssimas comidas que não me apetecem de jeito nenhum.
Um abraço,
Sérgio
13/08/2013 às 11:02
Acompanhei de longe e tive a mesma impressão: a de que o prato do Rodrigo parecia ser o melhor da noite. Experimentei versão deste prato há cerca de um ano, num festival fora do Brasil, e penso nele até hoje.
13/08/2013 às 11:12
Sérgio,
obrigado.
Não posso dizer o mesmo… Sou louco por moela.
Recomendo, se quiser fazer um teste, que prove o prato de moelas e fígado na grappa, da Tappo Trattoria, uma das melhores entradas servidas em restaurantes paulistano.
Abraços!
Constance,
todo o jantar foi muito bom, mas o prato do Rodrigo Oliveira estava mesmo sensacional.
Beijos!
13/08/2013 às 12:17
Análise precisa, Alhos! Uma vez mais. Presentão de dia dos pais. Sua filha acertou em cheio!
Adorei encontrar você e conhecer a família!
Beijos,
Janaina
13/08/2013 às 15:46
Alhos, é muito estimulante ler isso! Obrigado.
13/08/2013 às 16:08
Janaina,
obrigado.
Ótimo (sempre) encontrá-la.
Beijos!
Dória,
quem deve agradecer sou eu.
Abraços!
13/08/2013 às 17:06
Excelente mesmo. Mas, na verdade, o C5 e o Carlos Doria foram os idealizadores do evento, que foi organizado pelo Manioca.
14/08/2013 às 08:14
Os pratos continuam? Ou foi samba de uma noite só? Amei a idéia.
14/08/2013 às 11:30
Ana,
obrigado pela correção. Acertei o texto, indicando que foi idealizado pelo C5 e organizado e hospedado pelo Maní-Manioca.
Abraços!
Cris,
uma noite só. Espero que haja outros eventos e outras noites.
Beijos!
20/08/2013 às 12:12
Olá Comilão,
Com esta descrição tão deliciosa não tem pude evitar uma pontinha de inveja…rsrs.. Presente merecido.
Abraços
20/08/2013 às 15:37
Ricardo,
tudo bem?
Obrigado.
É inveja merecida. rs
Abraços!
30/08/2013 às 18:59
Desculpa, mas inveja mode on…
adoro moela. e ora pro nobis, quase desconhecida aqui (só vejo nas Minas Gerais)
ótimo tema, sorte de quem esteve lá para comprovar isto. forte abraço!
02/09/2013 às 18:24
Wair,
tudo bem?
Tomara que a experiência se repita.
Abraços!
25/09/2013 às 15:38
Oi,
Desculpe invadir seus comentários desta forma, mas trabalho na http://www.zomato.com, a plataforma social de descoberta de restaurantes que cresce mais rápido no mundo e chegaremos em SP em outubro. Estamos conversando com diversos foodies, blogueiros e jornalistas.
Qual seria a melhor forma de entrarmos em contato?
Obrigada,
Alê
07/10/2013 às 09:39
Alessandra,
tudo bem?
Pode me escrever no email alhospassas@uol.com.br
Abraços!