Brasil, país curioso

05/12/2014

 

De repente, não mais que de repente, o mundo virtual das comidas foi invadido por uma campanha: “eu como cultura”. Tuítes e retuítes, fotos se multiplicando no instagram.

 

A ideia é simples e significativa: que a gastronomia seja reconhecida como traço cultural.

 

O novo lema me parece ambíguo, de gosto duvidoso e de precária capacidade de comunicação com quem não é da área, mas não importa: vem em boa hora, inclusive para que saia de cena a ultrapassada diferenciação entre natureza e cultura, que outras campanhas recentes insistiram em usar, numa reencarnação de um tipo de antropologia que foi abandonado há algumas décadas.

 

Portanto, afirmo, logo de saída, minha completa concordância com o conceito: sim, gastronomia é parte da cultura. Aliás, desconheço quem discorde desse princípio.

 

O problema é que o Brasil é um país, em muitos aspectos, curioso. Ele possui, por exemplo, um excelente mecanismo de estímulo à produção cultural, por meio de renúncia fiscal. Excelente —também ele— no conceito, não necessariamente na prática.

 

Tenho suficiente idade para ter acompanhado, quase três décadas atrás, o ex-ministro (e extraordinário intelectual) Sérgio Paulo Rouanet, quando justificava os propósitos da lei que acabaria por receber seu nome. E ele falava da necessidade de viabilizar projetos culturais que, por serem polêmicos ou não produzirem retorno financeiro, têm dificuldades sérias para obter financiamento junto à iniciativa privada.

 

Ou seja, um objetivo central da lei era apoiar o que não se paga por si ou por outrem; aquele tipo de manifestação cultural que é essencial para testar novos rumos, novas possibilidades, mas, justamente por isso, tende a não ser lucrativo.

 

De lá para cá, vira-e-mexe ouvimos falar de projetos que tentam, e muitas vezes conseguem, direcionar esse recursos públicos para produções de franco apelo popular e amplo apoio privado, nacional e estrangeiro: shows, espetáculos circenses —todo mundo lembra de um caso desses.

 

Em bom português, a lei deixa aberta a oportunidade para que o dinheiro público seja utilizado em projetos estranhos ao que o ex-ministro pretendia que fosse seu alvo. Não sou, claro, o primeiro a afirmar isso; basta ver a quantidade de vezes que já ouvimos falar da necessidade de reformar a lei.

 

Daí me ponho a pensar em certos desdobramentos da campanha que pretende —repito: lícita e corretamente do ponto de vista legal e conceitual— associar gastronomia à cultura. Desdobramentos formais, legais, práticos: para ser cru, financeiros.

 

Porque também não é de hoje que se reivindica dinheiro público para o setor. Já se obtiveram, inclusive, alguns resultados concretos —embora tênues e pontuais—, através de iniciativas junto ao Ministério do Turismo.

 

Se a campanha for bem sucedida, todo um universo de renúncia fiscal poderá se dirigir à gastronomia —ainda mais por se tratar de setor em plena evidência (reparem: evitei a aparentemente pejorativa palavra “moda”). E que uso se fará?

 

Não sei.

 

Gosto de pensar que o dinheiro se prestará para viabilizar atividades de comunidades que se reúnem em torno de algum cultivo, de artesãos que se dedicam noite e dia ao trabalho e recebem pagamentos precaríssimos pelo ótimo produto que oferecem. Gosto de pensar que o emprego de recursos públicos na gastronomia terá também impacto social —como algumas ações hoje existentes, em alguns casos associadas a lideranças da atual campanha, provocam.

 

Mas volto a lembrar que o Brasil é um país curioso. Que controle haverá?

 

Quem me diz que não será a grande indústria de alimentos que desfrutará dos benefícios de renúncia fiscal? Quem garante que restaurantes que cobram 300 ou 500 reais por uma refeição —obviamente voltada a uma parcela reduzidíssima da sociedade brasileira— não vão se beneficiar, alegando o atrativo turístico ou a origem pesquisadamente tupiniquim de seu cardápio? É dúvida demais para que minha concordância com a campanha não seja, pelo menos por enquanto, apenas conceitual.

 

Tenho medo que de repente, não mais que de repente, do riso de poucos se faça o pranto de muitos. Muitos contribuintes.

 

 

 

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11 Respostas para “Brasil, país curioso”


  1. Que texto fantástico!
    Para ser bem breve, me ocorreu uma coisa: por exemplo, seria maravilhoso se parte desse dinheiro fosse àqueles ribeirinhos da Amazônia, de onde vem manufaturados como tucupi, farinha de tapioca ou mandioca, plantações de mandioca brava com sua maniva, pupunha, as frutas, açaí, e por aí vai – e cujo trabalho é árduo e pessimamente valorizado. Quando chegam aos restaurantes nos nossos pratos à mesa, tem preço de ouro em pó.
    Projeto de incentivo à cultura gastronômica seria para ajudar também ao longínquo e humilde produtor. Afinal, justiça acima de tudo.

  2. Patricia Lopes Says:

    Querido Alho. Como concordo com você! Infelizmente o controle será precário e ineficiente e sim, muitos recursos cairão nas mãos erradas, em projetos errados. Trabalhei alguns anos para uma grande empresa de eventos e consegui 100% de benefício fiscal nos projetos que apresentei. Cirque de Soleil, Os 3 Tenores, dentre outros foram projetos beneficiados. Um evento que tem seu ingresso mais barato em torno de R$ 100,00 e se esgota em poucas horas merece o benefício? Eu acho que não (na época era meu trabalho consegui-lo e me orgulhava de cumprir com meu papel de advogada – que abandonei anos mais tarde) era esse o intuito do Ministro ao vislumbrar a lei. Mas se os requisitos eram preenchidos por que não concedê-lo?
    A lei precisa ser modificada urgentemente! Não só a inclusão da gastronomia como cultura mas principalmente os requisitos para se conseguir o benefício.
    Mas não tenho dúvida que uma JBS da vida será beneficiada ao criar um produto ou evento gastronomicamente cultural.
    Haja visto o que aconteceu com a concessão de licenças de comida de rua em São Paulo. Não sou contra, pelo contrário, mas infelizmente não aalcançou quem realmente precisava.
    Este é o nosso Brasil curioso.
    Um abraço.

  3. alhos Says:

    Lena,
    obrigado por seu comentário.
    Se o objetivo for esse, apoio incondicionalmente. Tomara!
    Beijos!

    Patricia,
    tudo bem?
    Obrigado pelo comentário.
    É essa a questão: a definição de regras e sentidos mais claros para o uso de recursos oriundos de renúncia fiscal – na gastronomia ou em qualquer outro setor. Daí teremos um país, digamos, menos repleto de brechas e curiosidades.
    Abraços!


  4. Excelente análise. Parabéns pelo texto.

  5. alhos Says:

    Obrigado, Luciana.
    Abraços!

  6. Heloisa Says:

    Olá, Alho!
    Vim por indicação -indireta- do JB, e o agradeço.
    Parabéns pelo trabalho! Textos bem escritos e na ”medida certa”.
    Volto mais vezes.
    Obrigada.

  7. alhos Says:

    Heloisa,
    tudo bem?
    Desculpe-me, por favor, a demora na liberação de seu comentário.
    E muito obrigado por ele. Volte, sim.
    Abraços!


  8. O grande Antonio Houaiss já falava sobre a culinária como importante manifestação cultural. Mas (infelizmente) não creio no apoio governamental desprovido de interesses particulares. Pequenos produtores e comunidades produtoras poderiam ser beneficiadas com este tipo de incentivo, mas não acredito que cheguemos a este nivel de seriedade na distribuição de benefícios públicos.
    Forte abraço.

  9. alhos Says:

    Wair,
    tudo bem?
    Acho que é justamente essa a questão. Infelizmente.
    Abraços!


  10. Tenho acompanhado esta campanha e acho interessante que conheço inúmeros projetos de gastronomia aprovados pela lei de incentivo e com apoio, tanto governamental como privado. Esta campanha me parece uma grande jogada de marketing para um interesse especifico de um grupo com interesses específicos, usando a boa fé dos cozinheiros de todo o Brasil e aproveitando o embalo da Ice Bucket Challenge. Esta campanha manipula as emoções e o sincero desejo de todos envolvidos com gastronomia em apoiar uma boa causa. Porém, o argumento da campanha não faz o menor sentido, sem falar que os documentos, como a Portaria 22, foram alcançados por um grupo de Belém muito antes, no início de 2014, grupo que inclusive já apresentou projetos gastronômicos culturais na ONU. Sinto muita tristeza ao ver meus colegas de todo o Brasil serem usados desta forma. Somos tão influenciados pela força mediática de alguns indivíduos que não ponderamos mais se os argumentos que defendemos são corretos? O que precisamos na gastronomia brasileira é de um olhar mais crítico e menos emocional. Temos sim que apoiar boas propostas publicamente, porém aquelas que tem fundamento. Eu como cultura sim. Todos os dias. Porém, antes de comer cultura, eu penso e reflito. E esta campanha manipuladora, mal reciclada e sem sentido não tem o meu apoio.

  11. alhos Says:

    Luciana,
    muito obrigado por seu comentário. É preciso pensar, sempre. E ponderar, avaliar, refletir.
    Abraços!


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