Cada um tem seus mitos e seus fascínios. Se alguém quiser me oferecer um jantar e pedir que eu escolha o restaurante — qualquer restaurante do mundo —, a resposta está na ponta da língua: Yew Tree Inn.
É o refúgio de Marco Pierre White nos arredores de Londres. Três estrelas precoce, ex-patrão de Ramsay, Batali e Blumenthal, White virou mito, ainda mais depois que devolveu as estrelas ao Michelin e, teoricamente, se aposentou.
Infelizmente até hoje ninguém me fez semelhante proposta e tive de guardar a resposta…
No mês passado, fui a Londres. O carrossel do quotidiano, porém, me impediu de percorrer as quase setenta milhas até lá. Fazer o quê? Ora, ir ao L’Escargot, que fica ali mesmo, no Soho londrino.
L’Escargot nasceu em 1927, está instalado num prédio do século XVIII e tem gravuras de Miró, Matisse e Picasso nos salões. A decoração é elegante sem exageros: tradição e modernidade dialogam adequadamente. O restaurante teve muitos donos ao longo da história, e a lista inclui a participação societária de Jancis Robinson & her husband. Hoje está sob o comando de White — o restaurateur, não o chef.
O chef se chama Joseph Croan, mas o nome de White é que vai na fachada. E ele parece ter influenciado decisivamente a composição do cardápio, resumido e consistente, voltado à valorização dos ingredientes e à (aparente) simplicidade na execução.
Éramos seis na mesa e três pessoas, inclusive minha mulher, optaram pelo salmão orgânico acompanhado de curly kale, batatas e creme fraîche. Praticamente cru, o salmão tinha o sabor dos salmões de antigamente, quando ainda eram peixes. A couve (como se traduz curly kale?) era macia e crocante, identicamente quase crua.
Minha filha preferiu a coxa de pato, servida com lingüiça defumada de Morteau, chucrute, batatas e molho de vinho tinto. Um tanto forte para seus dez anos, mas a carne do pato vinha macia e com sabor marcante, intensificado pelo contraste alsaciano com o repolho e o molho.
Um cordeiro quase inacreditável de tão bom chegou para minha cunhada (ok, tecnicamente é concunhada, mas não vamos complicar as coisas), servido com tomatinhos confit, compota de abobrinha, batatas com queijo e molho de azeitonas pretas. A sensação era de morder o bicho relaxado, meio vivo e sonado. Uma delícia.
Mas o melhor prato — ah, meus caros — era o meu. Galinha d’angola silvestre assada e acompanhada simplesmente de batatas cozidas e do molho extraído no próprio preparo. A sensação do mato, do que é bruto e vivo, com a maciez e a intensidade que só as caças têm.
Ainda comemos boas sobremesas (torta de grapefruit & mousse de chocolate amargo com café e creme fraîche com laranja), mas a verdade estava ali, no meu prato principal: a cozinha que finge não existir, que parece não ter interferido nos sabores do que prepara.
A cozinha que não pretende ostentar sua condição de transformadora, embora seja óbvio que agiu. O reverso da celebrização de chefs e das receitas mirabolantes, de preparos que alteram a forma, a consistência e a aparência para “surpreender” o cliente.
No L’Escargot não há esse tipo de surpresa. A grande surpresa é que ainda existem cozinhas que não querem se impor ao que servem, ao que foi caçado, criado, cultivado. Cozinhas discretas e diretas.
Não, Marco Pierre White não estava lá. Sim, ele acompanhou espectralmente nosso jantar, a quase setenta milhas de Yew Tree. Não, não passou minha vontade de ir, um dia, a Yew Tree. Sim, saímos do restaurante com riso de orelha a orelha.
L’Escargot
48 Greek Street, Soho, Londres
http://www.whitestarline.org.uk/LEscargot_Restaurant.htm