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Sob a lua, um camelo

26/05/2010

 

Temos de ser justos: quem tem bossa é o camelo. O dromedário também, mas o camelo tem em dobro.

Só que, no Brasil, bossa passou a significar talento, vocação. Isso foi lá pelos anos 50 e hoje ninguém mais elogia o outro dizendo que o sujeito “tem bossa”. Das tantas novas bossas que havia — o presidente Juscelino Kubitschek, por exemplo — só restou a bossa nova, movimento musical.

E a expressão, além de indicar talento e novidade, até ficou associada ao Brasil, país que só tem camelos em zoológico.

O Projeto Cozinha Bossa Nova pegou emprestada a força da expressão e se dispôs a reunir chefs jovens. A primeira edição aconteceu em abril e levou Rodrigo Oliveira, do Mocotó, para cozinhar com Raphael Despirite, do Marcel.

Os jantares ocorrem às terças-feiras e isso, para mim, é um problema — e não vou explicar por quê. Resumo: não pude ir e fiquei salivando de longe, tal qual um camelo sem bossas.

A segunda edição foi ontem. Despirite recebeu Joca Pontes, do restaurante Ponte Nova, de Recife.

Camelei, camelei, aproveitei uma coincidência que me liberava mais cedo do trabalho, e fui. Além, claro, da oportunidade quase garantida de comer bem, duas coisas empolgavam: conhecer a comida de Joca Pontes, que nunca provara, e o próprio cardápio proposto.

Porque o cardápio revelava, talvez até melhor do que o da primeira edição (olha aí o despeito de quem não foi!), a junção de estilos.

Ei-lo: polvo grelhado com saladinha de chuchu e beterraba; “linguine” de pupunha com creme de couve-flor, coentro e aratu de pedra; lascas de bacalhau com migas de pão e manjericão, acompanhado de compota de tomate e cebolas ao perfume de laranja; cherne na manteiga de limão sobre purê de jerimun e leite de coco; entrecôte grelhado, mandioquinha e ora-pro-nóbis; queijos; creme queimado ao perfume de umburana; suflê de cupuaçu.

Não valia a pena atravessar um deserto para chegar lá? Valeu.

O único ponto frágil me pareceu a saladinha que acompanhava o polvo: sem graça. Fora isso, todos os sabores que tinham que estar ali estavam — e do jeito como deveriam estar. Polvo perfeito, aratú delicioso, bacalhau excelente, entrecôte suculento. Acompanhamentos sempre adequados, bem dosados, incisivos no diálogo com as carnes.

O creme queimado de sobremesa era fino e macio, delicado e saboroso. O suflê de cupuaçu, um jovem clássico, dispensa comentários.

Mas a estrela da noite, aquele prato pelo qual eu daria uma corcova, foi o cherne. Ligeiramente picante, ligeiramente adocicado, ligeiramente untuoso, ligeiramente ácido, ligeiramente cremoso. Um daqueles grandes pratos, que permitem experimentar os sentidos e os gostos, discerni-los, aprová-los. A combinação que justifica o conceito de bossa nova: novidade, talento, sutil brasilidade (seja o que isso for, estava lá).

Saí do restaurante e, sob a lua — como ficam os camelos no bonito poema de Jacques Roubaud —, voltei para casa cheio de bossa.


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