Foi Drummond, lá pelo início dos anos 30, que desabafou: Cansei de ser moderno, agora quero ser eterno.
Ele reagia às vanguardas da década de 20 e a seu culto furioso de tudo que é novo. O novo como um valor em si, absoluto, excludente.
Confesso que muitas vezes sinto algo parecido. Me incomoda, nas vanguardas, sobretudo a arrogância com que se apresentam. A crença orgulhosa de conhecerem uma verdade a que os demais não têm acesso. Pode ser vanguarda na política, nas artes visuais, na literatura, na gastronomia. Iconoclastas, vanguardistas refutam a tradição como se fosse bloco único, idolatram a novidade e se apresentam como anjos anunciadores do futuro.
Claro que é possível e desejável mudar. Mais: é inevitável. Ingênuo e prepotente é supor-se portador da verdade sobre o futuro e acreditar que o futuro é um e único.
Mas por que falar de vanguarda? Já faz algum tempo que a idéia desapareceu do mundo das artes ou se pulverizou em múltiplas aparições. Na verdade, a idéia de vanguarda se esfarelou juntamente com a crença de que o tempo é linear e a história, pré-definida.
Curiosamente, porém, a palavra ganhou força – faz mais de uma década – no universo da gastronomia. E chefs, críticos e críticas acharam que deviam optar entre a tradição e a inovação, como se fossem inconciliáveis. Como se fosse possível conceber uma sem a outra.
E assim se formaram times que passaram a jogar um Fla-Flu infinito, em que só perde quem quer comer bem. Restaurantes passaram a se definir e a ser definidos em termos antagônicos.
Os integrados à vanguarda rechaçaram as casas tradicionais por considerá-las ultrapassadas ou incapazes de inovar. Não perceberam que não era uma limitação? Era uma opção, lícita como qualquer outra, desde que bem executada.
Os que associaram a vanguarda ao apocalipse acreditaram que o fim dos tempos estava próximo e passaram a tremer todas as vezes em que ouviam falar, por exemplo, de espuma. Não perceberam que o novo é importante, até para que o tradicional ganhe expressividade e se atualize?
Para que tudo isso, meu Deus?, quase perguntou Drummond em outro verso.
Não sabemos todos que não há inovação que não dialogue com a tradição? Não sabemos todos que não há tradição que não possa encontrar seu lugar no presente e no futuro? Sabemos, claro. E sabem todos aqueles que, discursos a parte, praticam gastronomia honesta e de bom nível e não se deixam levar pelas águas turbulentas do confronto político.
É possível existir, numa mesma cidade, casas com projetos radicalmente diferentes? Claro que é. Possível e desejável. Então por que rejeitar o diferente, quando ele cumpre o que promete e oferece qualidade?
Nas últimas semanas, visitei mais de uma vez o Vecchio Torino. O nome já anuncia a opção gastronômica – na geografia e no tempo. Para dizer melhor: na tradição.
Alguns amigos meus nem passam perto e torcem a boca quando ouvem o nome. De outro lado, a clientela do restaurante é nitidamente de habitués e gente mais velha que eu (e olhe que sou mais velho do que a maioria das pessoas com que convivo). Mais da metade de quem o freqüenta cumprimenta o garçom pelo nome e o garçom conhece previamente seus gostos. Dificilmente um deles jantaria, digamos, no Maní.
Minha mulher e eu comemos o couvert, que está entre os melhores de São Paulo e tem anchovas fabulosas. No lugar da entrada, dividimos o famoso nhoque da casa: nove bolinhas para cada um. Todas inesquecíveis, dissolvem na boca. Enquanto isso, nos esforçamos no manejo da colher para não deixar escapar nem uma gota do molho maravilhoso de tomate fresco e queijo Fontina. Tem nhoque melhor em São Paulo? Duvido.
Como principal, minha mulher pediu o pargo, mas não havia. O garçom sugeriu um robalo, que chegou macio e delicioso, com molho de tomates frescos e alcaparras, acompanhado de brocoli. Básico e bom. Eu comi o ossobuco acompanhado de risoto. No centro do osso, uma colherzinha para pescar o tutano. Bom? Fabuloso, absurdamente macio e com sabor intenso. Ou seja, como um ossobuco tem que ser.
De sobremesa, um creme de mascarpone, que devia ser eternizado na galeria dos sabores essenciais.
Café e conta astronômica (turbinada pela caríssima carta de vinhos), com um deslize: a cobrança de 10% sobre o valor do estacionamento, serviço sobre serviço.
Tradicional, sim. Porque há dias em que a gente cansa de ser moderno e quer ser eterno. Como o Coliseu, como o bronze, como a cobertura de algumas ruas torinesas, como a comida de um restaurante que sabe que o passado não é dejeto; é matéria sobre a qual se trabalha incessantemente, para mantê-lo presente.
Tomara, hora dessas, que meus amigos vanguardistas vão lá. No mínimo, para depois me dizerem se ainda acreditam que a gastronomia tem sentido único. No máximo, para que reconheçam algo sagrado e tantas vezes banalizado: o direito de comer – bem. E sem rótulos.
[a guisa de making of da série… Quando saímos do restaurante, minha mulher brincou: “será que tem lugar mais tradicional?” Respondi: “Não sei… Se for tão bom, ótimo.” Então, ela completou: “E se molecularizassem o ossobuco?” E começamos a imaginar a “releitura” (epa, esse conceito é dos anos 60!) do ossobuco. No dia seguinte, em casa, veio a idéia de fazer a breve novela. Se alguém ficou chateado com a brincadeira, decepcionado porque o restaurante do capítulo 1 não existe de fato, peço desculpas. Mas que foi divertido, foi]
Vecchio Torino
Rua Tavares Cabral, 119, Pinheiros, SP
Tel 11 3816 0592
Como chegar lá (Guia 4 Cantos): Vecchio Torino