É sempre difícil traduzir observações, análises e conclusões em pontos. Tudo que é complexo se torna restrito, tudo que é amplo e variado mostra-se mínimo. Mais do que traduzir, é resumir, é reduzir —quem, por exemplo, já deu aula e aplicou prova sabe disso: ou se é suficientemente ingênuo para acreditar na precisão absoluta dos instrumentos de avaliação ou se viverá imerso num mar de dúvida e desconforto.
Mas, justamente por resumir e reduzir, pontos, escalas, metrificações facilitam a compreensão. Não por acaso, um dos motivos do sucesso de Robert Parker foi perceber que o sistema norte-americanos de notas escolares ajudaria não especialistas a comparar vinhos, a hierarquizá-los. O sistema de pontos da Wine Advocate virou mania e se universalizou —muito mais do que os excessos descritivos que caracterizam a revista e fizeram malfadada escola pelo mundo afora.
Em suma, a função de notas é orientar. Não aquele que já sabe ou supõe saber, mas quem é curioso e quer saber. Esse personagem talvez depois abandone o sistema que a princípio o guiou, talvez até o repudie; não importa: o papel das notas já se cumpriu.
Pontos, escalas, notas, estrelas. Há poucas semanas, o Guia Michelin atribuiu estrelas a restaurantes de Rio e São Paulo. As estrelas do Michelin são famosas há décadas e, em geral, respeitadas.
Quando o resultado da avaliação do Michelin apareceu na rede —dias antes do lançamento oficial do guia—, os habituais jornalistas de poltrona supuseram que sua divulgação precoce resultasse de um vazamento ou engano dos editores, e assim cumpriram o papel que o guia queria que cumprissem: divulgaram gratuita e amplamente seu lançamento.
Também começaram a aparecer críticas. Algumas eram apenas despeito de quem queria ter ganhado estrela, mas ficou fora de seus raios de luz e invejou quem ganhou. Outras derivavam da discordância em relação às escolhas e, lógico, da vaidade de não se ter o próprio gosto avalizado pela publicação.
Outras, finalmente —e felizmente—, eram sérias e questionavam, sobretudo, aspectos metodológicos da avaliação Michelin. Dentre essas, duas opinões consistentes e de respeito: Constance Escobar e Carlos Alberto Dória.
Vi a lista, li a opinião daqueles em quem confio e, antes de chegar a qualquer conclusão, lembrei de alguns critérios que guiam o guia: avaliações anônimas, feitas por pessoas desvinculadas de grupos, clubes e igrejinhas locais; balanço relativamente amplo do que há nas duas cidades. Lembrei também da listagem de restaurantes que hoje é mais divulgada pela mídia: a da revista britânica The Restaurant, com seus 50 melhores do mundo e de continentes.
Inevitavelmente, comparei-as. E confesso que, independentemente de concordâncias ou discordâncias, para além dos óbvios equívocos que toda avaliação implica, preferi a do Michelin.
Se o Michelin distribui estrelas, a da Restaurant se assemelha —mantendo as metáforas astronômicas— a um buraco negro: atrai tudo para si, consome para se consumar, é parcial ou completamente inexplicável.
No lugar do olhar local do Michelin, a Restaurant propõe um improvável e impossível ranking mundial. No lugar do avaliador anônimo e distante do Michelin, boa parte dos votantes da Restaurant pertence a um universo de chefs e restaurateurs unidos numa teia de afetos e desafetos, de interesses e invejas, de bajulação pública e execração privada. Há também jornalistas que aproveitam sua condição de eleitores para obter privilégios e, finalmente, dublês de jornalistas que exercitam sua vocação inata de gastrogroupies.
Claro que existe gente séria entre os eleitores da Restaurant. Conheço três deles e estão entre as pessoas mais competentes, dignas e honestas com quem já cruzei. Três.
Fico com o Michelin. E, embora discorde de suas avaliações no varejo, tendo a concordar no atacado.
Sei que é restritivo concentrar as avaliações em Rio e São Paulo. Sei também que a relativamente parca distribuição de estrelas decepcionou a muitos: nenhum restaurante ganhou as três, cotação máxima; apenas um recebeu duas. Sei, ainda, que a única estrela que tantos ganharam e a classificação de boa relação custo-benefício (bib gourmand) reúnem casas bastante dissimilares —algo inevitável quando se abarcam dezenas de estabelecimentos em apenas quatro categorias.
Mas espero que as duas primeiras ressalvas resultem do fato de ser a primeira edição. Seria provavelmente dificílimo, quiçá impossível, avaliar restaurantes do Brasil inteiro de uma só (e inicial) vez. No dia em que conseguirem, teremos finalmente um guia nacional de restaurantes —o 4 Rodas já teve bons dias, perdeu-se faz tempo e não conheço ninguém que o utilize; na única vez em que tentei seguir suas indicações, fiz uma das piores refeições da vida. Também o crescimento gradual, até a atribuição de três estrelas, é procedimento regular do Michelin e deriva da sequência de avaliações.
De resto, a absurda irregularidade e os crassos problemas de serviço da maioria dos restaurantes paulistanos e cariocas certamente dificultam voos estelares mais altos. Ou alguém acha que uma refeição no Mocotó ou no Maní, apesar da boa comida, não seja afetada pelo atendimento instável do primeiro e afetado do segundo?
O cliente habitual releva, o amigo da casa não sente; o avaliador anônimo e externo percebe. E o guia não é voltado a clientes habituais ou a amigos da casa: ele destina-se exatamente a quem não tem o mapa prévio do local ou a simpatia, sincera ou interesseira, dos donos.
Faz falta o Tordesilhas na lista? Muita. Sobra o Kosushi? Claro. O Jiquitaia é mesmo paraense? Lógico que não. Há excesso de restaurantes que servem comida japonesa? Acho que sim. A inclusão dos promissores Tuju e Lasai —onde fiz refeições apenas boas, sem maiores adjetivos— é precoce? Acho que é. Fiquei contente de ver restaurantes de que gosto, como Marcel e Sal, que não são tão valorizados por aqui? Fiquei. Roberta Sudbrack merecia uma segunda estrela? Na minha opinião, sim.
E poderíamos seguir assim, ressaltando uma coisa ou outra de positivo ou de negativo na lista.
Mas é minha opinião. E ela não tem essa importância toda. A rigor, não tem nenhuma. Nem deve pautar o gosto e os movimentos dos turistas que buscam se guiar pelo Michelin.
Michelin, que faz avaliações restritas e imprecisas —porque todas o são, em maior ou menor medida. Michelin, que reduz um conjunto complexo de elementos, análises e conclusões a poucas linhas e a um punhado de estrelas —porque assim são os guias.
E, não custa lembrar, não subestimemos os leitores: cabe-lhes avaliar a avaliação. Palpitando a esmo num blog, como estou fazendo aqui, ou comendo a comida e percebendo se, afinal, é ou não é tão boa quanto os inspetores do guia a julgaram. No fim, é esse leitor que pagará a conta e continuará a utilizar o guia ou o descartará.
De qualquer forma, com todas as imprecisões, ainda acho melhor um guia assim do que celebrar a ação entre amigos, como a lista dos 50 melhores do mundo, ou seguir opiniões disparatadas emitidas de forma autoritária pelas redes sociais.
É simples: mesmo encobertas por nuvens, estrelas ainda são preferíveis a buracos negros.