Esquina, lugar de encontro.
E a Esquina Mocotó nasceu, provavelmente, com a vocação dos encontros.
Em primeiro lugar, o que reúne a cozinha despojada e de viés popular do vizinho Mocotó com a gastronomia ascendente de uma cidade que se pretende grandiosa nas comidas —ou de um país que vende, para o exterior, uma imagem vaidosa, imprecisa e algo caricatural de suas origens e práticas culinárias.
Em segundo lugar, um encontro social: o do morador do centro ou dos bairros ricos, que concebe (mesmo que não confesse) seu passeio à Vila Medeiros como um gesto sociológico.
Poderia ter dado errado; felizmente deu certo. E, se deu certo, foi porque há algo que ultrapassa, e com facilidade, os esquematismos sociais e os maniqueísmos dos discursos: a boa comida.
O Mocotó servia e serve boa comida; o Esquina Mocotó serve boa comida. Dissolvem-se assim as teorias e confirma-se o prazer de comer —o que, convenhamos, é o que importa num restaurante.
Esquina Mocotó foi o lugar que escolhi para comemorar um encontro pessoal: o dos 50 anos, que completarei daqui a uns dias. E, numa sexta-feira quase feriado, dois de maio enforcado, cruzei os doze quilômetros que me separam da Zona Norte.
Curioso é que nossa refeição foi, a seu modo, uma demonstração de outro encontro, nem tão feliz: o da boa —na verdade, ótima— comida com uma experiência algo desagradável.
Porque a comida é o principal numa casa, mas não é imune aos problemas que podem cercá-la.
A caipirinha desequilibrada, por exemplo, em que o caju mal dava o ar da graça e o gengibre (na combinação com abacaxi) parecia totalmente ausente.
Ou o serviço, incrivelmente simpático e imensamente confuso. Com 80% das mesas ocupadas, penamos (e dois casais mais velhos, das mesas vizinhas, seguiam destino igual) para conseguir que alguém anotasse nossos pedidos ou trouxesse aquela garrafa de água, já pedida e quase esquecida.
Também a reserva de mesa com vários dias de antecedência não nos salvou de receber provavelmente a pior do restaurante: nos acomodaram, três pessoas, numa mesa para dois ao lado da área de espera, com vista para a parede. Quando a casa lotou e novos comensais aguardavam sua vez, precisávamos desviar de bolsas e cotovelos. Ruim.
Lutamos para abstrair o entorno e olhar para o lado bom —era uma comemoração, afinal, e de meio século de vida.
Pois a comida nos salvou. A extraordinária Porcaria —já e justamente decantada em verso e prosa— abriu o almoço, com ótimos embutidos, um porco na lata meio inexpressivo e dadinhos de porco sensacionais: foi necessário, inclusive, pedir uma porção inteira só deles.
Minha filha escolheu a carne de sol com baião de dois sertanejo. Embora não estivesse tão boa quanto a que comi em outra visita, a carne era suculenta e de gosto bem definido. O baião de dois parece mais italiano que sertanejo —assemelha-se a um risoto—, mas a procedência é secundária em relação ao sabor.
O pirarucu, acompanhado de cuscuz/farofa de castanha do Pará e vegetais —prato de minha mulher—, estava tenro, delicado, incisivo. O cabrito com que sonhei no caminho não podia ser servido, por falta do ingrediente. Fiquei com a costelinha de porco, macia, viva, deliciosa, servida com uma das tantas farofas excelentes da casa: foi o melhor prato.
Na sobremesa, ótimo sorbet de jabuticaba e excelente panna cotta de umbu, ligeiramente atrapalhada pelo dulçor excessivo da calda.
Valer a pena, valeu. Se dependesse do funcionamento geral da casa, não voltaria lá tão cedo. A depender da comida, quero ir lá toda semana.
Mais do que a localização geográfica —na esquina, essa metáfora—, talvez o contraste ajude a compreender a peculiaridade do restaurante, a demonstrar suas ambiguidades, a definir sua relação com o irmão e vizinho Mocotó.
Ou, ainda, a ilustrar os caminhos nada lineares ou regulares por onde circulam os restaurantes paulistanos.
Avenida Nossa Senhora do Loreto, 1104, Vila Medeiros, SP
tel. 11 2949 7049
04/05/2014 às 10:04
Olá, Alhos! Obrigado pela visita e parabéns pelos 50 anos. Mais um agradecimento e um cumprimento pelo texto, como sempre delicioso. Lamentamos por não ter tido a experiência que merecia nesse dia, uma pena mesmo. Mas torço pra que possa voltar em breve (ao menos antes dos 51!) e provar dentre outras pedidas, o cabrito com feijão guandu. Tenho certeza de que terá um grande almoço ou jantar, em todos os sentidos. Um forte abraço!
04/05/2014 às 14:09
Rodrigo,
obrigado por su leitura e por seu comentário.
Voltaremos, claro, muitas vezes.
Abraços!
28/05/2014 às 23:15
Lamentável a falta de sensibilidade de alguns donos de restaurante. Penso que uma experiência gastronômica para ser considerada boa tem que ser completa. Em nome da fama, da ganância e do repentino estrelato, esquecem de um dos mais comezinhos princípios da restauração, que é acomodar bem àqueles que procuram seus estabelecimentos.
02/06/2014 às 18:05
Ricardo,
tudo bem?
O atendimento do Mocotó de fato não está à altura da comida. Mas, diferentemente do que acontecem em outros restaurantes, os problemas de serviço não me parecem ser fruto do descaso, e sim de uma organização meio confusa.
Abraços!