A casa da minha avó

11/03/2015

 

A casa da minha avó era, na verdade, um apartamento, em plena Avenida Paulista.

 

(Antes houve outra, casa mesmo, no bairro de Santana, onde ela e meu avô foram morar depois que se casaram, em 1924. Lá viveram quarenta anos e justo no ano em que nasci mudaram-se para o apartamento da Paulista.)

 

A casa da minha avó ficava num prédio listrado, décimo-primeiro andar, na esquina da Paulista com a rua Maria Figueiredo. Eu almoçava lá quase todo dia, entre a escola e o curso de inglês ou antes da tarde em casa —também na Paulista, dois quarteirões distante— com meus livros e meus times de botão.

 

Ela aprendeu a cozinhar com alguém, porque era boa cozinheira. Aliás, ótima cozinheira. Filha da portuguesa Diolinda e de Hermann —prussiano que abandonou a família e a religião para se casar com uma católica—, não pôde herdar de nenhum deles a competência nas panelas. O pai nada entendia de cozinha e a mãe morreu cedo demais. Mas com alguém ela aprendeu.

 

Minha avó se chamava Mercedes e herdou do pai outros traços e o temperamento: valorizava o rigor, raramente ria e se irritava com as piadas e quase ininterruptas brincadeiras de meu avô (um sujeito maravilhoso, mas que não aparecerá nessa história).

 

Nos almoços diários, lá pelo começo dos anos 70, eu comia seu trivial e alguns pratos de que nunca me esqueci: a torta de maçã incomparável, a pamonha macia e suculenta (que, num belo dia, recebeu, sabe-se lá como, respingos de detergente e ganhou um singular gosto de sabão), o cozido, o incrível fígado acebolado, a sardinha escabeche.

 

De lá para cá se passaram muitos anos, demais até. Ela morreu em 79 e, de novo, nenhum legado culinário restou.

 

O filho mais velho casou-se e mudou, ainda antes de meus avós virem morar na Paulista; sua vida transcorreu em outro meridiano e os contatos, desde então e até hoje, foram fugazes.

 

O filho do meio, espécie de ídolo familiar, referência constante das histórias que cruzam gerações, era meio adoidado e tinha o coração maior do que o mundo —tão grande que se cansou cedo da vida e também não chegou a conhecer o apartamento da Paulista.

 

A filha mais nova, minha mãe, sempre odiou cozinhar e fugia da cozinha quando podia.

 

Os acasos da sorte fizeram com que outras comidas aparecessem no meu horizonte e que a da minha avó (juntamente com a que minha outra avó e meu pai, também excelentes cozinheiros, faziam) ficasse apenas na memória.

 

Comi, por exemplo, muitas sardinhas, preparadas de todas as formas, inclusive escabeche; umas ruins, outras boas, nenhuma igual.

 

Mas a vida tem lá suas armadilhas, também boas ou ruins, e justamente numa das semanas mais tristes que já vivi, a da morte de minha mãe, comi uma sardinha que me levou de volta àquela mesa de quarenta e poucos anos atrás.

 

Foi no almoço de ontem, na Taberna da Esquina. Eu estava sozinho, mas havia muito mais gente na minha mesa: avô, avó, irmã, mãe. Todos em torno da sardinha, todos envolvidos num daqueles rituais meio inconscientes e confusos, de que precisamos para seguir em frente.

 

Claro que nada garante que a memória não tenha me enganado e oferecido, na imaginação, aquilo que a vida não podia mais dar. É até provável que tenha acontecido exatamente isso.

 

Mas não importa, porque a ausência, de pessoas, casas e sardinhas, essa ausência assimilada, como diria Drummond, ninguém a rouba mais de mim.

 

 

 

18 Respostas to “A casa da minha avó”

  1. Milena Says:

    Uma memória puxa outra, e as vezes, algumas memórias se encontram. Obrigada pelas memórias que me proporcionou hoje, das comidas da minha avó materna que também marcaram a minha infância. E, da saudade que eu sempre tive da minha avó paterna, que não tive a oportunidade de conhecer, mas pelo que sempre ouvi e ainda ouço, cozinhava muito bem.
    um abraço

  2. Paulo Says:

    Olá
    seu texto hoje estava pra lá de inspirado, falou de tristeza, sem usar nenhuma palavra triste, e de alegrias de forma linda, apesar de tudo que vivemos, no final, as melhores lembranças são aquelas de que compartilhamos ‘a mesa com pessoas que nos são queridas,
    parabéns

  3. alhos Says:

    Milena,
    obrigado por seu comentário.
    É isso: o fio da memória é infinito, ocasionalmente arisco, mas sempre necessário.
    Abraços!

    Paulo,
    muito obrigado.
    Sigamos sempre a máxima de Oswald: a alegria é a prova dos nove.
    Abraços!

  4. Adrina Says:

    Delicado, poético e muito amoroso. Sinto por sua perda e desejo-lhe serenidade. Um abraço apertado.

  5. cassio Says:

    Belo texto. Remete-me também a boas memórias. É o Taberna, é bom ? Soube que até o expresso vem de Portugal

  6. Flavio Macarrão Says:

    Lembrei do sugo da minha vó Iracema(que aprendeu com a bisa toscana).

    A peça de carne frita por horas no dia anterior produzia um “marrom” na panela que seria usada para fazer o sugo.
    Esse marrom é que iria dar o gosto e escurecer o molho dos tomates bem maduros.
    Baita texto e fica devendo a história do avô que nessa não entrou.
    Abs!

  7. alhos Says:

    Adrina,
    obrigado e obrigado.
    Beijos!

    Cassio,
    obrigado.
    Gostei muito da sardinha e da alheira. E menos das pataniscas de bacalhau e do pudim de azeite e mel, ambos com menos sabor do que poderiam ter.
    Abraços!

    Flavio,
    obrigado,
    É isso: aquelas coisas que a memória não nos deixa perder.
    Abraços!

  8. Robson Says:

    Seus textos sempre são especiais e este ainda me pegou às vésperas de completar um ano da morte de meu pai. Essa ausência – ainda sendo assimilada – muitas vezes tira o ar, a alegria e o apetite. Frequentemente, porém, é na mesa, ou nas lembranças de algumas mesas, que faço as pazes com a saudade, como lembrar do antigo doce de banana feito num tacho no quintal de uma casa muito simples, no interior de Minas, acompanhado de um queijo e café tão simples quanto, mas insuperáveis. Ou os peixes fritos logo depois da pescaria amadora no rio local. Para meu pai, comer era algo muito simples e muito bom. Mesmo nos “estrelados” restaurantes, aos quais nunca quis me acompanhar, por achar que neles havia muita “invencionice”, são as memórias que me ocorrem sempre, como quando comi uma sobremesa de banana no “Tête à Tête”, em recente visita a SP. -Enfim, obrigado e, mesmo que de um leitor desconhecido, receba forte abraço.

  9. alhos Says:

    Robson,
    muito obrigado pelo comentário e pelo abraço, que retribuo.
    Você tem razão: a assimilação da ausência não elimina outras sensações e sentimentos. Força.
    Abraços!

  10. Luiz Says:

    A casa da minha avó era na Paulista com Brigadeiro, Ed. Nações Unidas. Jamais esquecerei do cheiro que vinha da cozinha. Belo texto. Grande abraço.

  11. alhos Says:

    Luiz,
    obrigado.
    Em algum momento, nos cruzamos na galeria do Nações Unidas. Todos os dias passava por ela; meu prédio ficava defronte.
    Abraços!


  12. Lindo texto! Também tive uma casa de vó. Na da minha tinha molho ao sugo feito com carne que ficava longas horas cozinhando no molho de tomate; tinha torta de camarão, e tinha bolo de Iguape, um bolinho simples feito de farinha de arroz. Deliciosas lembranças. Beijos,

  13. Adriana Says:

    Que interessante é a vida com seus fios que se entrelaçam, formam nós e tramas maravilhosas.. este texto toca, emociona porque somos levados pela saudade e pela memória a lugares íntimos que não visitamos com frequência e que guardam pessoas e sabores de tempos que se foram.. Muito obrigada!

  14. alhos Says:

    Luciana,
    obrigado pelo comentário.
    Das lembranças que nos justificam.
    Abraços!

    Adriana,
    eu é que agradeço: muito obrigado.
    Abraços!


  15. Belo texto, Alhos. Acontece ocasionalmente comigo, quando cozinho algo que me remete ao passado, passado de criança, comida da Vó, do Pai que vou tentando reproduzir fielmente. Nem sempre acerto, sempre chego perto daquela memória gustativa. Quando acerto em cheio, sinto que eles me vêem sorrindo com aquela expressão: Não é que ele conseguiu? Satisfação e Saudades enchem a cozinha.

    Abraço do Ernestão.

  16. alhos Says:

    Ernesto,
    obrigado por seu comentário.
    Busquemos sempre esse sorriso, mesmo que ocasionalmente ele traga um toque de melancolia, não é?
    Abraços!

  17. Anna Says:

    Fomos numa especie de ‘bakery grega’ em Nova York, eu e a minha mãe. Olhamos encantadas para os armários de madeira repletos de biscoitos típicos… Escolhemos com cuidado, três deles pra experimentarmos… e de repente tínhamos voltado à casa da minha avó, que falecera alguns anos antes. Sem nenhuma palavra, olhamos uma para a cara da outra e caímos no choro. Essas experiências nos trazem lembranças muito fortes mesmo. Muita paz e conforto para você. Obrigada por compartilhar 🙂

    ps. não deu tempo de aprender a cozinhar com a minha avó, banqueteira incrível que dedicou a vida dela para a cozinha. Mas ela me deixou um caderno com suas receitas, quase que criptografadas. Hoje em dia tento reproduzí-las todas!

  18. alhos Says:

    Anna,
    eu é que agradeço por sua história, tão bonita.
    Desejo muito sucesso na reconstrução das receitas.
    Abraços!


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