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El Baqueano

29/07/2012

 

El Baqueano: o restaurante que escolhemos para encerrar uma semana de bons passeios e refeições trágicas na cidade que já foi a minha preferida no mundo.

 

Inevitável: ele entrou para o roteiro dos turistas brasileiros que gostam de comer bem quando, dois anos atrás, o Paladar —suplemento gastronômico do Estadão— lhe deu destaque numa matéria sobre Buenos Aires. Não bastasse, estava também no topo da lista de recomendações feita por um amigo que entende de comidas.

 

Dizem por aí —e sabemos bem, ah, se sabemos…— que expectativa alta é prenúncio de decepção extrema. E ela batia nas nuvens quando chegamos à porta, ainda fechada, da casa de San Telmo. Tocamos a campainha às 8 em ponto e entramos no salão moderno e agradável.

 

A proposta do Baqueano é servir carnes de animais naturais do país que são consumidas no interior e no litoral, mas não estão presentes nos cardápios dos restaurantes e no dia-a-dia das grandes cidades argentinas: lhama, jacaré, javali, lebre… Em bom português, oferecer o que é inusual aos paladares urbanos para fazê-los lembrar o que é usual aos paladares de outras partes.

 

Por cerca de três horas seguimos a degustação (única opção da casa) e, ao sairmos, estávamos bem satisfeitos. E com uma dúvida na cabeça.

 

Nem todos os pratos nos agradaram, é verdade. O javali com ovo preparado a baixa temperatura estava irreversivelmente rijo e resistia com bravura à faca e aos dentes. Insisti e dei cabo dele; minha mulher e minha filha o abandonaram quase inteiro. Perguntamos à sommelière (e responsável pelo salão) se a textura era mesmo aquela e ela nos disse que sim: o restaurante optava por preservar a estrutura das carnes e, portanto, mantinha a rigidez natural do javali. Ao final do jantar, ela voltou a nos procurar e reconheceu que a cozinha provara a carne e notara que ela estava exageradamente dura.

 

A lebre e o caracol com texturas de cogumelos silvestres tinham aparência e sabor marcantes: sugeriam mata & mato e demonstravam o caráter prioritariamente conceitual do prato.

 

Também havia notável preocupação com explicitação de conceitos e técnicas no prato que abriu a refeição e que combinava quatro texturas distintas de batata. Aqui, porém, o sabor estava à altura da proposta.

 

Superior aos três foi a agradável salada morna de vizcacha, roedor aparentado à chinchila, de carne firme e consistente. As duas sobremesas —“texturas de pera com sopa duo de chocolate” e “abóbora + garrapiñada + sopa de queijo + sorvete de torrontés”— fecharam corretamente a refeição.

 

O melhor, no entanto, compareceu no segundo e no terceiro pratos da sequência: uma excelente coxinha de jacaré e a sensacional “interpretação de moussaka”, feita com carne de lhama.

 

Transplantada para o Prata, a coxinha tinha fritura precisa e excelente proporção entre massa e recheio. A carne do réptil, de gosto obviamente mais incisivo que o do frango, se ajustou maravilhosamente ao salgado brasileiro. A moussaka, por sua vez, associava sabores intensos, bem definidos, no melhor prato da noite.

 

Os ótimos vinhos que acompanharam os pratos mostraram uma Argentina bastante diferente da que nossas importadoras em geral privilegiam, uma Argentina mais suave, incisiva, aveludada, complexa: Tupun viognier 2010 (para as texturas de batata, a vizcacha e o jacaré), Tempus merlot 2008 (para a moussaka e a lebre), Punto Final cabernet sauvignon single vineyard (para a lebre), Lancatay sémillon blanc late harvest (para as sobremesas).

 

Se o saldo do jantar foi predominantemente bom, por que, então, sobrou a tal dúvida mencionada no início do texto?

 

Dúvida que girou nas nossas cabeças pelos dois quilômetros de ruas que percorremos a caminho do hotel, ruas quase vazias dessa cidade sempre linda; dúvida persistiu mesmo semanas depois, já de volta a São Paulo: será que temos clareza do sabor dos animais que comemos?

 

O comensal regular da casa —estrangeiros e, creio, argentinos— não está habituado à peculiaridade desses gostos e não os descobre com plenitude através das receitas servidas. Diferentemente do que ocorre com carnes já provadas milhares de vezes, em inúmeras versões e formas de preparo, é difícil perceber o, digamos, tom específico daquele animal, a presença singular daquele sabor.

 

Ainda durante a refeição, minha mulher levantou a questão: e se eles servissem um pedacinho de cada carne, puro e destituído do amplo repertório de temperos que os pratos comportam? Uma espécie de mostruário, para que o cliente dimensionasse melhor o uso do ingrediente?

 

Sei qual seria a resposta da casa. O Baqueano rejeita tratar como exóticas as carnes que serve. O princípio —algo ideológico— está no site do restaurante e é explicitado no preparo dos pratos: jacaré, vizcacha, lhama são utilizados de modo a não destacar sua especificidade. Eles compõem as receitas e o gosto deve deslizar suavemente em meio a outros ingredientes e combinações.

 

Respeito o conceito e concordo em tese. Só que minha perspectiva não é a do restaurante. É a do curioso que gosta de experimentar e de conhecer mais coisas. Que, no jantar, prefere a comida à ideologia.

 

Como conciliar dois usos, aparentemente incompatíveis, dos mesmos ingredientes? Como rejeitar o exotismo e, ao mesmo tempo, reconhecer que, para bastante gente, há mesmo muito de exotismo na coisa?

 

Claro que não tenho resposta para a questão. Claro, também, que ela não desmerece em nada a boa cozinha e o excelente trabalho com vinhos do Baqueano. Ao contrário: dá mais alento e vontade de voltar.

 

 

El Baqueano

Calle Chile, 495, San Telmo, Buenos Aires, Argentina