Faz pelo menos dois séculos, dois séculos e meio, que homens discutem o lugar da tecnologia.
Quase sempre, a discussão é maniqueísta. Há aqueles que se integram plenamente e celebram cada feito tecnológico como redentor, capaz de salvar a humanidade das ameaças da natureza, de elevá-la a outro patamar na equação das espécies. E há os apocalípticos, que temem as mudanças tecnológicas, que creem mais no seu poder devastador do que na capacidade construtiva.
O mesmo pensamento binário leva o primeiro grupo ao fascínio e ao deslumbramento diante das novidades, e o segundo a uma espécie de idealização do mundo natural, à nostalgia de uma era feliz que se teria perdido.
Algo, porém, une uns a outros: a simplicidade do raciocínio. Sejamos um pouco mais rudes: a infantilidade de suas crenças e descrenças na tecnologia, a incapacidade de enxergar que o mundo, quando desmistificado, é bem mais complexo.
Na cozinha não é diferente. Há três anos quase exatos, saiu o calhamaço de Nathan Myhrvold, Modernist Cuisine. Um jornalista, com a convicção e a segurança que só os muito ignaros alcançam, profetizou: ‘em dois anos, não haverá outros livros de cozinha e todos os restaurantes tomarão Modernist Cuisine como Bíblia.’ Outros simplesmente desprezaram a obra e declararam que jamais a leriam.
Da minha parte, preferi temer a aposta futurista e positivista (e, por isso mesmo, ahistórica e anacrônica) de Myhrvold — a despeito da óbvia qualidade de sua pesquisa e de seus experimentos — e mantive minhas barbas grisalhas de molho. Essa relutância virou um texto e me garantiu, por algum tempo, o apelido de ‘ludista’ (claro que quem o usou o fez de forma pejorativa, pois, convictamente desatualizado de tudo, não sabia que os ludistas são hoje vistos de maneira bastante positiva. Mas essa é outra história…).
A verdade é que, nesses três anos, pouca coisa parece ter mudado na forma como a maioria dos cozinheiros encara o lugar das novas invenções na cozinha. O tratamento da mídia especializada sobre o assunto tampouco facilita a percepção de que há mais, e mais profundas, coisas no céu e na terra da gastronomia do que normalmente sonhamos.
Quer um exemplo categórico de que o emprego intenso de tecnologia na cozinha não pode ser tratado de forma banal e simplista? Vá ao Oro.
Felipe Bronze, o chef, conquistou a antipatia de colegas de profissão e a desconfiança de comensais graças aos recursos tecnológicos a que recorre em seus preparos. No outro extremo do fio, ganhou renome e alguma admiração por causa de seu programa de televisão, em que expõe a parafernália tecnólogica e suas possibilidades.
Confesso que jamais assisti ao programa e sempre preferi ignorar as críticas sólidas ou maledicentes de seus concorrentes num mercado cada vez mais hostil e em franco processo de encolhimento. Preferi — e sempre prefiro — comer sua comida.
Nessa semana, visitei novamente o Oro. A primeira vez tinha sido em dezembro de 2011 e, embora tenha gostado do que comi, não quis escrever sobre o restaurante no blog.
No salão relativamente vazio, optei pela degustação intermediária, com sete turnos (há também uma um pouco menor, outra um pouco maior e uma mastodôntica) e harmonização de cerveja e vinho.
Não relatarei passo a passo porque não quero cansá-lo ainda mais, pobre e heroico leitor que atravessou sete parágrafos para chegar até a resenha propriamente dita.
Digo-lhes, porém, que a achei excessiva na quantidade e na qualidade.
Excessiva na quantidade — de que quase não dei conta — porque, por exemplo, o primeiro curso é composto de oito ‘snacks’ e nenhum é diminuto ou pode ser desconsiderado.
Deles, o melhor, para mim, foi a compressa de melancia com sardinha curada e ‘brisa de menta’; seguido de perto pela combinação ‘alho e cebola em três preparos’. O ‘bife a cavalo na colher’, que envolve a óbvia transformação de forma e relação entre os elementos do prato tradicional, exagerou no sabor de assado e resultou desequilibrado.
Também ‘Carioquices’, penúltimo prato salgado, é múltiplo, com versões próprias de quatro clássicos cariocas. O sanduíche Cervantes e o refrigerante de gengibre que simula o copo de chopp foram meus preferidos: inteligentes, bem construídos visualmente e muito saborosos.
Entre os pratos maiores, uma decepção: a lula com edamame, caviar de tapioca e alga era linda, mas sem gosto.
Três pratos — todos de elaboração técnica precisa e com amplo recurso a novidades tecnológicas — estavam, por sua vez, extraordinários. A rabada com polenta (defumada e toque de tutano), farofa de milho e agrião foi das melhores que já provei. O filhote (com purê de beterraba perfumado com cumaru, limão siciliano e castanhas do Pará) tinha sabor intenso, claro e definido. A cavaquinha grelhada com purê frio de pistache, limão siciliano e pupunha crocante foi o melhor prato da noite e, até agora, do ano.
De ‘Brasilidades’ — versões de doces tradicionais brasileiros — não posso falar. Minha resistência já se esgotara: apenas as provei rapidamente. Antes delas, porém, o sorvete de capim limão com algodão doce e saúva encerrou deliciosamente a refeição.
Repito: o Oro ajuda muito a pensar o lugar da tecnologia na cozinha. Desde que você não tenha preconceito, claro (mas, com preconceito, como ir até a geladeira da própria casa?).
Existem excessos, sem dúvida, e alguma pirotecnia desnecessária, como o preparo de sorvete com nitrogênio líquido diante do cliente (que vi em visita anterior) ou o exagero do serviço na descrição longa, detalhada e algo cansativa dos preparos.
Existe também o trabalho preciso da sommelière para harmonizar pratos cuja relação com vinho é sempre difícil (pela quantidade de ingredientes, pelas combinações inusitadas). Cecilia Aldaz o faz aparentemente com serenidade e sem ostentação. E ainda para dois minutos ao lado da mesa para conversar sobre… Borges!
Existe, sobretudo, uma capacidade de transformar o imenso edifício das quinquilharias tecnológicas em pratos saborosos. Vários deles certamente poderiam ser feitos de outra maneira. Só que não o foram e o resultado que de fato importa para o comensal — comida excelente — foi obtido.
Sempre vale a pena (não custa lembrar) deixar na gaveta as convicções acríticas, os maniqueísmos crédulos, os pressupostos categóricos, as conclusões antecipadas. Entender que — já disse Lezama Lima — só o difícil é estimulante. E esse difícil resulta das relações complexas, mesmo se elas à distância parecem simples; ele resulta de uma percepção mais elaborada do mundo.
A vida, afinal, não é unívoca. Por que então nossa relação com a tecnologia, dentro e fora da cozinha, o seria?
Rua Frei Leandro, 20, Jardim Botânico, Rio de Janeiro
tel. 21 7864 9622
15/02/2014 às 11:15
É raro alguém abordar o trabalho do Felipe com tamanha lucidez. Em geral, o preconceito não permite.
15/02/2014 às 11:33
Constance,
obrigado.
Não custa lembrar: as melhores resenhas do Oro (e não só do Oro) estão no seu blog.
Beijos!
15/02/2014 às 17:40
não conheço o Oro, nem tão pouco o chefe citado, mas ao começar a ler seu texto, parei por um instante para ter certeza que não estaria lendo algo escrito por Saramago.
abraço
15/02/2014 às 21:27
Que beleza de texto sobre esse restaurante Alhos !
Fiquei com vontade de ir ao RJ para conhecer o Oro !
Abs.
15/02/2014 às 23:55
Em muitos anos de carreira, não vi alguém que tenha sido tão assertivo sobre nosso trabalho. Obrigado e parabéns pela “coragem” de escrever tão elogiosamente sobre o Oro. Nossa equipe (e principalmente, eu) ficamos realmente emocionados, felizes e de “alma lavada”.
Muito obrigado.
Felipe
16/02/2014 às 09:31
Paulo,
obrigado. Seu comentário é generoso e gentilmente equivocado. rs
Mas, claro, agradeço.
Abraços!
Luiz Henrique,
obrigado.
Vale a pena visitar o Oro. E, no Rio, aproveite para conhecer o RS.
Nos últimos tempos, foram os restaurantes em que melhor comi.
Abraços!
Felipe,
muito obrigado por seu comentário.
E, principalmente, pela boa comida.
Abraços!
18/02/2014 às 14:06
Oi Alhos!
Não conheço o restaurante, mas não consegui não comentar, pois veja só: entrei aqui no seu blog para dar uma pausa num trabalho em que ando mergulhada… Sabe o que eu estava lendo minutos antes de ler seu post? “Apocalípticos e integrados”!! Estou passada com a coincidência!
Umberto Eco indica que o ideal é encontrar um caminho do meio, certo? Aparentemente, o Oro conseguiu!
Fiquei com vontade de ir lá.
Bjs!
18/02/2014 às 18:04
Abobrinhas [e assim estabelecemos um diálogo vegetal…],
tudo bem?
Uma boa coincidência. Brinquei com os termos usados pelo Eco, preocupado com o caminho intermediário e, sobretudo, com a necessidade de que se tenha consciência dos extremos e da complexidade.
Aproveite o livro, maravilhoso.
E, quando puder, vá ao oro, vale a pena.
Abraços!
18/02/2014 às 21:26
Nao sei porque apareceu esse abobrinhas! O blog que nao continuei! Coisas da tecnologia! 🙂
Nao precisa publicar esse comentário! Bjs Ju
23/04/2014 às 19:23
Pena que o blog acabou…é ótimo
25/04/2014 às 09:38
Roger,
obrigado.
Mas, olhe, não acabou, não.
Está meio parado porque os dias andam especialmente difíceis. Dia desses, publico algo novo.
Abraços!