Fábula

05/08/2015

 

No cinza de uma tarde de agosto, ele deixou a filha no teatro e seguiu em frente.

 

Os dias andavam ariscos, ríspidos, os meses, os dois últimos anos. As férias recentes não tinham sido suficientes. O que havia nele era sobretudo cansaço.

 

Passou pela porta do Conceição como passara tantas outras vezes, mas dessa vez havia algo de mecânico no andar, de pouco humano. E mecânico foi o cumprimento, lançado de longe à dona do lugar.

 

Sentou-se e, como desde cedo aprendera que nada cura mais que um livro, abriu o seu e avançou por uma história triste, toda feita de perda e desencontro.

 

O silêncio emoldurado de jazz dissolveu, por três horas, o mundo torpe de fora e, para prosseguir nos números, ele leu um livro, tomou três cafés e comeu um pedaço de brownie.

 

Quando saiu de lá, era fim de tarde e o céu azulava. Ao descer os degraus da rua, deu um abraço e um beijo na Talitha, melhor cozinheira que ele conhecia em São Paulo. Seguiu para reencontrar a filha e, junto com ela, uma vida que — tal qual o Conceição provou naquela tarde — pode ser melhor.

 

*

 

 

ps. Não sei se voltarei a escrever no blog. Até acho provável que sim, mas hoje não sei. O silêncio dos últimos meses já mostrou que compartilho o cansaço do personagem do conto. Se de fato acabar agora, dias antes de o blog completar nove anos, gosto que seja com um comentário sobre o Conceição Discos e Comes, esse lugar único, que oferece muito mais do que ótima comida. Afinal, o blog nunca tratou só de comida: começou como uma brincadeira, virou um exercício de paladar e texto e quase sempre foi feliz.

 

 

20 Respostas to “Fábula”

  1. Patricia Lopes Says:

    Não nos deixe… Se não for no blog, continue. Ainda que em alguma folha de papel que possa ser compartilhada!

  2. Daniel Barros Says:

    Meu primeiro comentário. (talvez) Seu último texto. A vida é uma sequência de perdas. Obrigado por tudo, Alhos.

  3. Milena Says:

    Como já disse Guimarães Rosa há algum tempo “a vida é assim, esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.” Uma vez uma pessoa, me disse: não fique presa às regras que você mesma criou. Me marcou, e espero que de alguma forma chegue a você. Uma das belezas da vida é o seu poder de renovação, são os seus os seus ciclos de vida e morte e vida.

  4. alhos Says:

    Obrigado, Patricia.
    Se não for no blog, encontraremos outros caminhos.
    Abraços!

    Daniel,
    eu é que devo agradecer pelas leituras.
    Abraços!

    Milena,
    obrigado pela referência de Rosa: é isso mesmo.
    Abraços!

  5. Alex Says:

    Tenho a impressão que o mundo das comidas ( ou foodie, se preferir…eu não) chegou a um ponto de exaustão , ao menos na imprensa dita especializada. Daí a extinção de vários blogs/sites, culminando com sucesso de “reality” de culinária, que é o golpe final em termos de superexposição de um tema. Pelo visto VC já captou há tempos esse cansaço gastronômico.

  6. alhos Says:

    Alex,
    concordo: triunfou a cultura do espetáculo, a bajulação e o oportunismo.
    Abraços!

  7. Juba Says:

    Ah, não, ah, não… JB prenunciando o fim e você desistindo de escrever. Muita angústia para uma semana só.
    Por favor, Alhos, continue, mesmo que seja fazendo ficção.

  8. alhos Says:

    Juba,
    obrigado por seu comentário. Os dias andam difíceis. Aqueles que fazem divulgação paga mascarada de crítica venceram; venceram os oportunistas e os de precário caráter. Venceram os olhos fechados para os conflitos de interesse. Enfim…
    Mas continuamos por aí, de fato ou de ficção.
    Abraços!

  9. almir Says:

    por favor continue…imagino que eu faça parte de um grupo – não desprezível – de pessoas que acessava o blog várias vezes todas as semanas nos últimos meses para saber se teríamos algo novo (e verdadeiro!) vindo de vc…um gde abç

    almir

  10. alhos Says:

    Almir,
    obrigado pelo comentário.
    Vamos seguindo. Quem sabe, hora dessas?
    Abraços!

  11. José Ernesto Tambaschia Says:

    Caro Alhos

    Não o conheço, muito menos sei seu nome, mas não deixe de escrever. Seus textos são sinceros e esclarecedores. De fato a gastronomia está muito em evidência na televisão e nisto proliferam-se os entendedores e bajuladores na grande rede, que não é o seu caso e do JB.

    Mesmo rareando os textos, não pare.

    Abraço

    Ernestão

  12. alhos Says:

    Ernestão,
    muito obrigado por seu comentário.
    Acho que, mais dia, menos dia, aparecerá texto por aqui
    Abraços!

  13. Ricardo Gonçalves Says:

    Uma pena caro Alhos.
    Gosto muito dos seus textos.
    Esse ambiente de ódio político tem contaminado todas as nossas esferas do viver, principalmente aqui no tucanistão.

    um grande abraço e torcida para que ,mesmo de vez em quando, você dê seus pitacos por aqui!!!

    Ricardo.

  14. alhos Says:

    Ricardo,
    muito obrigado.
    Virei, sim.
    Abraços!


  15. Tomara q.de vez em quando v. apareça. Seus textos são tão tocantes q. sempre q.venho aqui, encontro um alento,pq. antes da comida, vem a descrição daquele cotidiano de todos nós…, enfim, obrigada pelas emoções.

  16. alhos Says:

    Patrícia,
    só hoje vi o comentário. Me desculpe…
    Tentarei.
    Obrigado a você, pela gentileza.
    Abraços!

  17. Thiago Miranda Says:

    Volta!

  18. blog Says:

    Obrigado, Thiago.
    Mas o mar não está para peixe…
    Abraço!

  19. Henrique Says:

    Alhos,

    Acompanho há poucos dias o seu blog e estou lendo todos os posts em sequência. Atualmente estou em “Saint Louis”, o que é triste pois logo acabam os posts.
    Conheci seu blog pelo boteco do JB (atualmente Edifício Tristeza), e acho incrível o seu jeito de escrever.
    Acredito que ambos tenham algumas semelhanças que me atraem, como por exemplo a sinceridade em relação aos pratos e o fato de você pagar sua visita ao restaurante, pois acho que isso os tornam mais autênticos na escrita. Como diz o JB, “sem rabo preso”.

    Não peço para que volte a escrever. Lendo os comentários acima vejo que você tem os seus motivos para ter parado, e os respeito independente de quais sejam. Mas você fará falta.

    Abraços de um fã de gastronomia.

  20. blog Says:

    Henrique,
    muito obrigado por seu gentil comentário.
    De fato, pagar a conta é o mínimo que se pode fazer para garantir a autonomia da crítica.
    Abraços!


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