O Paladar de hoje é todo dedicado à mamutesca obra de Nathan Myrhrvold. O assunto, grosso modo, é tecnologia e ciência na cozinha.
Tudo é fabuloso no trabalho de Myhrvold. O empenho, a obsessão, a disposição para o confronto, o resultado: cinco polpudos volumes, que, como já observou Carlos Dória, muitíssimos citarão, pouquíssimos lerão.
A reportagem, assinada por Olivia Fraga, respeita o alto padrão do caderno, sem igual nessas terras em que (nem) tudo dá.
Li, reli e não contive a estupefação. Só que ela não surgiu em função do que Myhrvold afirma ou faz. Aparentemente há pesquisas profundas e palpites vagos, criteriosamente misturados. Óbvio que não li a obra; portanto, não avalio.
Fiquei, na verdade, estupefato com o pano de fundo de tudo isso: uma contradição profunda e desconfortável:
Tudo parece estar revolvido, tudo parece ser contestável e contestado, iconoclastia é a palavra de ordem.
No entanto, persiste — firme e robusta — a crença na positividade e verdade da tecnologia e da ciência.
Persiste, ainda, a aposta de que elas podem viver desconectadas da realidade, observando-a de fora, protegidas e superiores.
Se não bastasse, também persiste o autorreconhecimento como vanguarda.
Pois é.
A mesma positividade e verdade científicas que durante quase todo o século XX foram questionadas — inclusive pela microbiologia, aparente eixo de abertura da obra.
O mesmo desprezo pelo mundo real e suas assimetrias, seu acaso, seu incalculável. O desprezo que Mallarmé, Nietzsche e tantos outros denunciaram como autoritários.
A mesma autocelebração como vanguarda, independentemente do conceito não frequentar os debates culturais mais consistentes desde a década de 1950. Num tempo que não pode ser representado como linha, num mundo em que os caminhos são tantos, e tão diferentes uns dos outros, como identificar quem está à frente?
Claro que essas crenças subterrâneas jamais seriam admitidas pelos discursos em geral empolgados dos que celebram as molecularidades gastronômicas e assemelhados.
Mas sua prática e as cifras que subjazem à sua retórica confirmam.
Meu Deus — me resta evocar —, não bastou o horror trazido pela revolução industrial do XVIII e a ciência da bomba no XX? Tecnologia e ciência, caros positivistas, é sempre bom e verdade?
Não valeria a pena, junto com a iconoclastia de fachada, exercitar um pouco a autorreflexão e, melhor, a autocrítica?
24/03/2011 às 12:05
“Num tempo que não pode ser representado como linha, num mundo em que os caminhos são tantos, e tão diferentes uns dos outros, como identificar quem está à frente?”
Caramba, não esperava – apesar da qualidade conhecida e reconhecida de seus textos – uma síntese tão perfeita do pensamento humanista. Obrigado.
24/03/2011 às 12:11
Marcelo,
obrigado.
Mas é isso, não é? Como falar em vanguarda?
Abraços!
24/03/2011 às 12:20
Alhos,
Ainda nao li o Paladar.
Seu aborrecimento eh com a materia ou o livro?
Abs,
24/03/2011 às 12:27
Fernanda,
tudo bem?
Na verdade, não é aborrecimento, mas estupor.
E não é com nenhum dos dois. A matéria é excelente e o o livro deve ser interessante.
Meu espanto é com a persistência, no mundo da gastronomia, de um conceito de ciência e de tecnologia que é totalmente ultrapassado, acrítico.
Mas enfim…
Abraços!
26/03/2011 às 23:37
Bem, tenho uma tendência à cozinha tradicional – ou menos modernista, por assim dizer – e, ao mesmo tempo,sou possuído por uma curiosidade quase infantil. Fiz o teste do vinho – uma meia garrafa de um malbec correto (Catena Zapata). O que tomei após a “hiperventilação” foi algo estranho, parecia uma cerveja que congelou, descongelou e foi servida. Parecia que algo “faltava”, e não que algo foi realçado. As vezes tenho a impressão de que cientistas confundem simples com simplificado. Creio que foi Oscar Wilde quem vaticinou que as coisas simples são o último refúgio de um espírito complexo.
E seu texto é magnífico!abs
27/03/2011 às 09:29
Alhos,
pegando o trecho citado pelo Marcelo me obrigo a perguntar….por que a necessidade de identificar quem está à frente?Por simplesmente não se pode ser(ou estar)?
Independente de todo o resto?
Até!
27/03/2011 às 09:48
Wair,
tudo bem?
Confesso que não arriscaria a experiência. rs
Abraços!
Kaki,
tudo bem?
Mais de cem anos depois do início do XX, acho que ‘vanguarda’ (com sua decorrente concepção linear da história, metáfora de ‘trem’ e tudo mais) continua a ser uma grife, algo que dá legitimidade ao que se propõe. Infelizmente.
Abraços!